O Ministério Público Federal (MPF) denunciou duas médicas, uma técnica de enfermagem, uma enfermeira e uma farmacêutica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), no Triângulo Mineiro, por crime de homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal). A denúncia é referente à morte de uma criança de 8 anos, em 9 de junho de 2014, depois que o paciente recebeu dosagem de cloreto de potássio quatro vezes maior do que o recomendado pela literatura médica.
A denúncia foi recebida pelo juízo da 3ª Vara Federal de Uberlândia. Mas como se trata de acusação de homicídio doloso, o juiz ainda deverá decidir, após defesa prévia apresentada pelos acusados, sobre a pronúncia, que é o ato por meio do qual o magistrado decide se os réus devem ser levados a julgamento pelo Tribunal do Júri.
De acordo com o MPF, o paciente I.F.L. deu entrada no pronto-socorro do HC-UFU, às 17h06, com diagnóstico de cetoacidose diabética. Após receber o atendimento inicial, ele apresentou evolução satisfatória. Às 23h, a médica N.K.R.B. prescreveu-lhe cloreto de potássio 15% (128 ml) e soro fisiológico 0,9% (1 litro), a serem administrados no decorrer de quatro sessões. Segundo o órgão, o corpo de enfermeiros de plantão naquele dia considerou altíssima a dosagem prescrita para uma criança de apenas 8 anos e pouco mais de 32 quilos e questionou a médica residente, T.S.L.C., que, em resposta, disse que já havia checado e confirmado a prescrição feita por sua chefe, N.K.R.B..
Segundo o MPF, no momento da liberação do medicamento na farmácia do hospital, a farmacêutica responsável, G.F.B., refutou a prescrição e se negou a fornecer o remédio, requerendo que a médica residente confirmasse novamente a prescrição. Como T.S.L.C. foi contundente em reafirmar a correção da dosagem, a farmacêutica, mesmo ciente do risco de vida para a criança, liberou o medicamento na forma solicitada. Poucas horas depois, às 3h50 de 10 de junho, após receber a primeira das quatro doses do cloreto de potássio ministrado pela técnica de enfermagem J.C.C. e pela enfermeira F.C.R.R.C., a criança apresentou intenso sangramento gástrico, seguido de parada cardiorrespiratória,morrendo menos de uma hora depois, às 4h15 minutos daquele dia.
DOSAGEM EXCESSIVA
Sindicância instaurada pela Comissão de Ética em Enfermagem concluiu que teria havido administração excessiva do medicamento, o que foi confirmado inclusive por exame de sangue realizado após a morte do menor. Também a Gerência de Risco do HC-UFU notificou o evento como "erro de cálculo da correção de potássio". De acordo com a denúncia, como I.F.L. tinha apenas 32 quilos, ele somente poderia receber até oito mililitros do medicamento a cada hora. No entanto, foram-lhe prescritos 128ml de cloreto de potássio no período de quatro horas, o que daria 32ml por sessão. Ou seja, o paciente "recebeu dose quatro vezes superior ao recomendado pela literatura médica".
Assim que recebeu o medicamento, I.F.L. começou a se queixar de fortes dores, mas a enfermeira F.C.R.R.C., ao invés de interromper a medicação, determinou apenas que fosse feito novo acesso no braço direito da criança e que se continuasse o tratamento.
A denúncia relata que a médica N.K.R.B., "agindo com truculência e asseverando que, como ela era médica do caso, sabia muito bem o que estava fazendo, determinou que o medicamento fosse aplicado imediatamente, assumindo, assim, o risco de produzir o resultado morte". Os demais acusados, segundo o MPF, "a despeito de terem prévia ciência da irregularidade na dosagem do cloreto de potássio e que a alta dosagem mataria a criança, inexplicavelmente forneceram e aplicaram o medicamento", assumindo, também, o risco da morte do paciente. Segundo foi apurado durante o inquérito policial, uma das técnicas de enfermagem que estava de plantão, A.D.A., "recusou-se terminantemente a participar das aplicações, asseverando que elas iriam matar a criança".
TENTATIVA DE ACOBERTAR
A denúncia do MPF cita ainda um terceiro médico, C.L.F.O., incluído na denúncia por ter agido para acobertar o crime e evitar que os fatos viessem a público. O órgão esclarece que, ao tomar conhecimento do ocorrido, C.L.F.O. informou falsamente aos pais do menor que ele havia morrido em decorrência de uma parada cardiorrespiratória provocada pelo diabetes. E ainda os convenceu a não autorizar a necropsia, argumentando que a realização desse exame somente traria mais tristeza e desconforto. No entanto, conforme explica a denúncia, a necropsia é obrigatória, não dependendo do consentimento da família, sempre que a morte decorrer de algum evento externo.
CRIME
Os profissionais diretamente envolvidos na morte do menor vão responder pelo crime de homicídio doloso com duas agravantes: a de ter sido cometido com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão (alínea g) e por ter sido cometido contra criança, velho, enfermo ou mulher grávida (alínea h), ambas do artigo 61, II, do Código Penal. O MPF ainda imputou à médica N.K.R.B. a agravante do artigo 62, III, que consiste no agravamento da pena quando o agente "instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade".
A médica T.S.L.C. foi denunciada também por falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal), por ter inserido informação falsa na declaração de óbito, omitindo que a morte teria resultado de parada cardiorrespiratória decorrente de hiperpotassemia ou hipercalemia. A denúncia, segundo o MPF ainda imputa ao médico C.L.F.O., que agiu para acobertar a real causa da morte da criança quando tinha o dever legal de determinar a apuração dos fatos, os crimes de prevaricação (artigo 319), fraude processual (artigo 347) e favorecimento pessoal (artigo 348), todos do Código Penal.
A direção do Hospital das Clínicas de Uberlândia informou que não vai comentar o caso, por se tratar de um processo de esfera criminal, em que são citados os profissionais. Esclarece, no entanto, que adotou sistema de prescrição eletrônica de medicamentos, que dispõe de mecanismos de alerta de segurança e risco. (RB)