Declaração de óbito causa desentendimento entre IML e Samu

Médicos do serviço da prefeitura e legistas da Polícia Civil travam batalha sobre a responsabilidade de atestar as mortes não violentas ou suspeitas, deixando ambulâncias paradas e arrastando a liberação de documentos

Junia Oliveira

Médicos do Samu questionam emissão de declaração de morte com "causa desconhecida" - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A PRESS

A emissão de declarações de óbito virou motivo de desentendimento entre o Instituto Médico Legal (IML) e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), em Belo Horizonte. Isso porque, em abril, o órgão da Polícia Civil resolveu se ater, na prática, às suas funções essenciais: fazer, preferencialmente, perícias criminais. E deixou para médicos do paciente, do serviço de urgência ou dos estabelecimentos de saúde a responsabilidade de assinar os atestados de morte de caráter cível.

Profissionais relatam que dúvidas entre as equipes sobre quem deve fazer a declaração em determinados momentos têm gerado discussões e deixado paradas no local de óbito ambulâncias que deveriam sair pela cidade para salvar vidas. Eles denunciam ainda que acordo com o IML para acerto das situações específicas de atuação do Samu não estaria sendo cumprido.

Comunicado do IML emitido em 13 de abril informa que, a partir do dia 11 daquele mês, o instituto não mais faria necrópsias em cadáveres provenientes de hospitais, alegando que, há vários anos, assumia essa função “supletivamente, mas diante da nova normativa do CFM (Conselho Federal de Medicina) e do significativo aumento da demanda, que vem prejudicando nossas reais funções, não há outra opção”.

De acordo com a Resolução 2.132, de janeiro deste ano, o médico do serviço de urgência, e de qualquer outro estabelecimento de saúde, é obrigado a atestar o óbito e a emitir a declaração sempre que a causa da morte não for violenta ou suspeita – mesmo que não tenha prestado assistência ao paciente. O documento reitera ainda que, também em caráter supletivo, o IML continuará atendendo pacientes que morrem em domicílio sem assistência médica, e as mortes de interesse epidemiológico, quando solicitadas pelas autoridades sanitárias.

Em reunião entre IML, Samu e Secretaria Municipal de Sáude, ficou determinado que os médicos do serviço de urgência atestariam mortes clínicas, exceto para vítimas que não podem ser identificadas, para óbitos em via pública e quando não houvesse familiar no local. E, não sendo possível a identificação da causa da morte, a declaração seria preenchida como “causa desconhecida”.

Os médicos, no entanto, relatam que em várias situações,  colegas que ficam na central de regulação do Samu dando encaminhamento às ocorrências, quem está na rua prestando atendimento e os servidores da Polícia Civil têm discutido por telefone para ver quem se responsabiliza pelo corpo.
No fim de semana, por exemplo, uma equipe ficou parada uma hora e meia num beco de um aglomerado pedindo ao IML que atendesse o jovem caído. A resposta do delegado, do outro lado da linha foi que o Samu deveria atender, pois era morte por uso de droga.

“Aquilo era uma morte suspeita e não era da alçada do Samu dar essa declaração. O colega saiu da cena sem emitir e deixou o corpo aos cuidados da Polícia Militar. E o mais grave é que a ambulância ficou mais de uma hora indisponível para a população”, disse um médico, que pediu anonimato.

Ele cobra bom senso: “O IML está certo em fazer essas mudanças, pois a maior parte dos óbitos que recebe são clínicos e não era papel dele fazer a declação. Mas, de repente, fechar as portas para todo mundo, sem a estrutura adequada, não dá”. “Não somos contra emitir a declaração e isso é obrigação nossa, de certa forma. Mas, quando nos vemos diante de uma situação suspeita e não nos sentimos seguros, o IML não está respeitando”, diz.

MORTE SUSPEITA Um outro profissional, que também não quis se identificar, contou o caso de um colega que se deparou com um usuário de drogas, que estava em casa, morto havia várias horas. “Ele disse que não tinha segurança para atestar a causa da morte. O IML bateu boca, dizendo que tinha que dar. Ele não fez a declaração”, lembra.

Das 27 ambulâncias do Samu em Belo Horizonte, apenas seis têm médicos e devem atender também a várias cidades da região metropolitana. “Fica uma ambulância presa por causa de alguém que está morto, sendo que o Samu é para resgatar pessoas vivas”, pondera.


“Vítimas de infarto, pacientes com quadro neurológico grave, portadores de câncer em fase terminal, por exemplo, é tranquilo de fazer, damos o atestado em 10 minutos. Mas diante de uma morte suspeita, pedimos para a família acionar o IML e aí começa o transtorno. E quem já está com um parente morto fica sem saber para onde vai”, relata.

Um outro médico também reclama. “Se tiver algum acidente, um infarto em outro local, deixo de ir, porque estou preenchendo papelada. Se o plantão acaba, uma outra equipe tem que voltar para reconstatar o óbito e, enquanto isso, outras ocorrências ficam aguardando”, diz.

“Em casos de paciente idoso, sequelado de AVC, oncológico, darmos o atestado é um alívio para a família, porque não tem sentido ela ser obrigada a ir ao IML, sendo que já sabemos a base do óbito. Mas, e numa situação que ocorreu, por exemplo, de um rapaz de cerca de 30 anos, sem comorbidade prévia, morto na casa dele? Pode ter tido crise convulsiva e morrido, mas quem garante que não foi intoxicado? O IML fala que se não virmos nada suspeito podemos dar a declaração. Mas num caso desses, como vou emiti-la? Para uma pessoa que morre num quarto de hotel, vou entregar a declaração ao porteiro?”, questiona.

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