A colaboração e a solidariedade entre os dois é uma política comum às colônias de pessoas que pernoitam nas calçadas e praças de Belo Horizonte. Um pilar de confiança, que ajuda a manter a insegurança e o desconforto do calçamento duro e frio em níveis aceitáveis, para muitos condições melhores do que as encontradas nos abrigos públicos. Nas aglomerações – ou malocas, como seus ocupantes as chamam – das ruas do eixo Bairro Funcionários (Centro-Sul) e região hospitalar, cada doação que chega é compartilhada entre essas habitações. Percorrendo os pontos pela Avenida Brasil como se também estivesse nas ruas, a reportagem do Estado de Minas acabou provando da hospitalidade mineira à moda da rua. Impossível chegar numa das áreas ocupadas por lavadores de carros, flanelinhas e pedintes sem receber ofertas de potes de sopa, pacotes de panetone, sacos de pães, pratos de marmita, garrafas d’água, cobertores, roupas entre outros. “A gente ajuda um ao outro porque estamos no mesmo barco”, resume Elisa, satisfeita com o cobertor que recebeu.
Confiança As trocas, contudo, ocorrem numa relação de confiança. “Se vacilar na pista (quebrar as regras), a gente bota para andar (manda ir embora). Na rua tem muita violência, mas muita gente que se ajuda. E tem de ser assim, porque tem muito skinhead que pia (aparece) no inverno, quando a gente se junta para se aquecer. Quase botaram fogo em mim”, conta a carioca Patrícia, de 33, que vive na Rua Bernardo Monteiro com outras 12 pessoas em situação de rua. A doação acaba sendo também uma estratégia de manter os artigos em circulação. “Não adianta a gente guardar as coisas. A prefeitura diz que não, mas os guardas municipais tomam o que temos. A gente até tenta esconder nos bueiros, mas depois que perde, fica difícil conseguir roupas, cobertores, panelas e outras coisas de novo”, relata Célio Nascimento Santos, de 43, natural de Roraima.
Prova de resistência na madrugada
O castigo do vento frio sapecando a pele pela malha de algodão serviu para ser aceito entre as pessoas que passam a noite na Praça Raul Soares, no Centro de BH, uma forma de ter uma experiência próxima à de outras 40 que o fazem por falta de opção. Foi assim, pedindo para compartilhar o calor de uma fogueira e entre garfadas numa panelada de mandioca e cebola fritas, que o casal de idosos Sônia e Sérgio me contou como as coisas funcionam na praça. “Aqui, todo mundo tem seu canto. Ninguém bole (incomoda) com o outro, senão a gente manda ir embora”, afirmou Sandra. Mesmo alimentado, tinha de continuar comendo o que me ofereciam, pois mais do que gentileza isso era um conselho: “Para aguentar a madrugada fria, meu filho, a gente precisa comer coisa quente e de sal. É isso que sustenta, que te faz aguentar”, ensinou Sérgio.
Ganhei uma folha de papelão para servir de isolante térmico sobre a grama, mas, sem um cobertor, o vento era insuportável, mesmo com quatro camadas de roupas. Por sorte, recebi um cobertor doado por religiosos – que mais tarde doei a outra pessoa. Inexperiente, descobri da pior forma que não se deita perto das árvores, pois elas demarcam o banheiro das ruas. Por volta de 22h, o movimento cai muito. Observava a maioria dos moradores já encolhidos em seus cobertores e defesas de caixas de papelão.
Apenas um grupo ainda rodeava uma fogueira na parte alta. Mas o frio e o estado de alerta contra a violência me mantiveram acordado. Durante a madrugada, não suportei o ar gélido e tive de perambular pela praça, o que me valeu uma mordida na perna de Leão, o cachorro de uma das moradoras de rua, que depois se desculpou pelo ato do animal. Pelo menos as presas não perfuraram o cobertor e a calça jeans. O dia nasceu iluminando o Conjunto JK. O corpo doído e frio era prova de que só resistência e solidariedade para se suportar a vida nas ruas de BH.