“O motorista chegou a puxar meu pescoço para me beijar, enquanto eu repetia que aquilo não ia acontecer. Com muito custo, ele voltou a dirigir e me deixou em casa, mas, na porta, ainda insistiu no beijo”. O trecho é de um relato publicado em uma rede social no início do mês pela estudante E., de 20 anos, e poderia ser mais um dos muitos textos que se espalham pela internet sobre assédio sexual no sistema de transporte de Belo Horizonte não tivesse provocado o desligamento de um motorista do aplicativo Uber na capital.
O caso ilustra como redes sociais se tornaram espaço para mulheres denunciarem o problema e trocarem informações, mas para passageiras e grupos feministas está longe de representar a realidade cotidiana: elas relatam que casos raramente resultam em punição e cobram de autoridades e empresas de transporte políticas para combater o machismo por parte de autoridades e empresas de transporte.
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Assédio inibe presença de mulheres no ecossistema de startupsUniversitária detalha ao EM assédio por motorista do Uber, em BH Aluna de odontologia da UFJF denuncia professor por agressão e assédioRelatos de assédio e até estupro por taxistas ou motoristas de aplicativos se multiplicamMPL distribui kit com alfinete e apito para evitar assédio no transporte público de BHAssédio pode ser motivo de homicídio em Raposos, na Grande BHEm outro relato, Tamara (nome fictício), de 29, descreve terrível experiência em um ônibus. “Quando girei a roleta, o trocador passou a mão (...).
No caso de Tamara, uma reclamação formal à BHTrans até gerou resposta informando que o cobrador “foi chamado a prestar esclarecimentos e a receber reorientação”, mas ela decidiu publicar seu relato na internet para, entre outras coisas, manifestar instatisfação com o desrespeito diário a que mulheres estão sujeitas. Como ela, muitas passageiras e integrantes de grupos feministas consideram insuficiente e inadequado o mecanismo de ouvidoria padrão de responsáveis por transporte público. Elas cobram políticas efetivas para combater o comportamento machista no setor – levantamento realizado pela ONG internacional Actionaid em 2015 indicou que o Brasil é primeiro do ranking mundial de assédio em espaços urbanos: 86% das brasileiras pesquisadas disseram ser alvos frequentes de cantadas, comentários, xingamentos, entre outros comportamentos sexistas.
“A inércia diante de um problema que é notório com certeza significa uma conivência, o que ajuda a manter aquela situação sem uma solução”, avalia a relações públicas Gabriela Moura, escritora e ativista do feminismo. Ela defende combate, de fato, ao sexismo. “De um modo geral, é mais do que fazer propaganda. É estabelecer políticas de diversidade, por exemplo”, afirma.
Para Laura Martello, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG (Nepem), essas políticas poderiam passar pela abordagem de questões de gênero no treinamento dos colaboradores do sexo masculino. “Precisa ser uma capacitação específica, que contribua para desnaturalizar o comportamento abusivo. Que diga explicitamente a eles que não é aceitável que eles se sintam tão à vontade para dar em cima de uma mulher só porque ela está sozinha, por exemplo”, sugere.
Questionados pela reportagem, aplicativos de transporte, BHTrans e responsáveis pelo metrô defenderam que adotam medidas contra o assédio. A Uber informou que seus parceiros recebem vídeos em que têm a oportunidade de aprender “como os usuários gostam de ser tratados”. Como ações complementares, a companhia cita ainda que “já fez parcerias com campanhas como a Disque 180 durante o carnaval e também com o movimento #33diassemmachismo.”
A BHTrans, por sua vez, registrou em nota que condutores de táxis, ônibus e vans, antes de entrar no sistema, têm que se submeter a um curso obrigatório, que inclui módulo de “relacionamento interpessoal”. A CBTU comunicou que implantou, em 2016, o SMS Denúncia, também disponível para WhatsApp pelo número (31) 99999-1108. A companhia citou ainda que “realiza campanhas educativas”.
Usuárias do sistema de transporte e ativistas, no entanto, reforçam que consideram as políticas atuais insuficientes. A cientista social Luiza Souza, do movimento Tarifa Zero de BH, propõe, por exemplo, a contratação de mais trabalhadoras para o quadro de funcionários das empresas.
SUBNOTIFICAÇÃO Outra dificuldade no combate ao problema é a subnotificação de casos. Segundo a Polícia Civil, foram registrados 43 boletins de ocorrência em BH com queixas envolvendo assédio, mas não há detalhamento de quantos no sistema de transporte. A BHTrans, por sua vez, informou que recebe, em média, apenas duas reclamações anuais contra taxistas motivadas por “falta de decoro”.
“O assédio no transporte público é muito subnotificado. Para agravar o quadro, quando há denúncia e cabe representação do B.O., que é autorização da vítima para dar início ao processo criminal, muitas moças desistem”, diz a delegada Danúbia Quadros, chefe da Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, ao Idoso e ao Portador de Deficiência da Polícia Civil de Minas.
Ela defende investimento em educação. “É preciso empoderar a menina desde a infância. Da mesma maneira, é preciso educar o menino para que ele enxergue as mulheres como suas iguais. E issoé trabalho que sobra para todo mundo: empresas, escola, famílias, polícia. Todos são responsáveis”..