Jornal Estado de Minas

Repórter-fotográfico do EM relata a caminhada pelo sertão Mineiro


O projeto Caminho do Sertão surgiu para mim no ano passado, e logo despertou a vontade de conhecer mais profundamente o universo de Guimarães Rosa. Esta foi a terceira edição da caminhada. E toda essa saga começa por Sagarana. Pertencente ao município de Arinos, Sagarana foi um dos primeiros assentamentos de reforma agrária no país, promovido pelo Incra na década de 1970. Lá fica também a reserva de mesmo nome, destinada à conservação da biodiversidade. Céus de muitos passarinhos. Terra da força das fiandeiras e dos homens cantando a Folia de Reis. A noite chega e todos se apresentam animados, um forró improvisado terminando ao luar. Despertam em mim uma pequena sensação de pertencimento. “Sertão – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.” E ele veio, como prometeram as sábias palavras do mestre, em nossas andanças relatadas no diário a seguir.



1º DIA - 31 km

De Sagarana a Morrinhos 


São 4h da manhã e somos despertados por linda canção, acompanhada de suave flauta doce. Prévia da rotina até o fim da jornada. Cedo para aproveitar o dia, para que o sol não desgaste muito os caminhantes. Muitos ainda estão se conhecendo. Café da manhã, desmontar o acampamento, alongamentos e organização da saída. Pausa para a foto oficial. A passagem sob o portal com os dizeres "Sagarana, com garra e com gana se consagra a saga à alma humana” dá início à jornada pelo sertão de dentro de cada um, o empoeira-se de Rosa... Os guias seriam nossos guardiões, ensinadores. Pausa grande para um lanche reforçado. O dono da casa oferece baru torrado. Nunca tinha provado o amendoim do Rosa... Seguimos por fazendas, sertanejos, veredas – todas secas. Alívio na chegada a Morrinhos, comunidade de Arinos banhada pelo Urucuia (foto): somos batizados com um balde de água do rio – fundo, como a alma sertaneja, esverdeado, como os olhos de Diadorim. “Perto de muita água, tudo é feliz”, já dizia o mestre.

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
2º DIA - 42 km

De Morrinhos à Vila Bom Jesus


Madruguei para ver que meus pés não estavam bem. Duas bolhas, as pernas doem. Curativos. Companheiros também sentem o peso do caminhar no sertão. Este se revelaria o dia mais pesado, de maior distância, o mais difícil, pra se ter coragem. Começamos a caminhar no limiar do dia. Consegui cumprir uns 10 quilômetros. Fui dos primeiros a chamar o carro de apoio e foi preciso coragem até para isso. Fui contra meu próprio impulso. Talvez conseguisse completar o dia, mas talvez não terminasse esta Travessia. O povo ia chegando para o pão com carne e a conversa de que teríamos ainda mais 20 poucos quilômetros. Os guias falavam que pela frente vinha um lindo cerrado. Tinha de fotografar. De dentro veio força para recomeçar. Andei pelo cerrado bravo, uma estradazinha beirando uma cerca. Estrada principal. Rodovia. De novo peço ajuda e o apoio me busca. Fui dos primeiros a chegar à Vila Bom Jesus. "O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”, diria, como disse, Rosa.

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
3º DIA - 19 km

Da Vila Bom Jesus à Fazenda Menino


Noite pensativa. Os pés insistem em demandar cuidado. Pulsa o corpo. Já é quase meio do caminho, hora de adentrar no mais profundo sertão. Área mais preservada. Portal do dia: "Amar adentro o Sertão". A direção é a Fazenda Menino. Antes, uma pausa, ao meio-dia. No meio do caminho tem um rio, Ribeirão de Areia, com águas límpidas e fundo arenoso. Almoço. A alegria e a vida pulsam na batida da zabumba e do pífano. A caminhada já não parece tão grande, só uns sete quilômetros. Casa da Dona Geralda e seu José. Somos recebidos com farto café. Dona Geralda é forte, guerreira, mas já quase não enxerga. Não importa: à noite, em sua sala, todos lhe prestam atenção. Foi torturada pela ditadura, revólver na cabeça. Seu José, o marido, foi levado para Brasília. O governo pensava que a fazenda poderia estar fabricando guerrilheiros. O relato é emocionante, de humildade e simplicidade enormes. Todos vão dormir revigorados. À cabeça, vem de novo Rosa: "Ah, mas no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo".



(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
4º DIA - 24 km

Da Fazenda Menino a Córrego Garimpeiro


Primeiros raios de sol, alongamento, chamada, contemplar uma escultura. Releitura sertaneja de obra de famoso artista ucraniano. O sertão é de todos, mas cada um faz sua leitura. O ambiente chama a reflexão. A solidão nos ajuda a cair no sertão de dentro. O dia é de calor, sol. E no meio disso tudo tinha um oásis: famosa Vereda Garimpeiro. Água fria, pequenos peixes, pés inchados, doloridos. Vejo pegada de onça, sempre-vivas. Vejo com tristeza fogo nas veredas e vejo o deserto chegando. Quarto dia da jornada. Quatro é a base, a cruz, são quatro pontos cardeais, o conhecimento. Todo conhecimento tem de ajudar a viver bem. Orientar o caminho, a jornada, a vereda, a vida. Estamos nós, a humanidade, avariados, sem saber pra onde caminhar. Hoje sou realmente o último a chegar. Dormimos no quintal de uma casa sertaneja, sem eletricidade, feita de areia branca de formigueiro. "Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim, ruim(...) Como é que posso com este mundo?”, matutava o mestre das veredas.

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
5º DIA - 26 km

De Córrego Garimpeiro a Ribeirão de Areia


Quase lá: quinto dia de Travessia. Portal de hoje: “Conhesertão: vi-ve-redas”. Hora de revolver a terra. Hora também de revolver as coisas dentro da gente. E o deserto também chega perto das veredas. No caminho tem muita areia... chega a assustar seu avanço. Nosso apoio, que já tinha atolado ontem, volta a ter problemas. Tempo com pouca água, sem comida. Pés afundam e caminhar é sofrido. Mas a paisagem é linda. Veredas juntas formam uma única e enorme vereda. Buritis, araras, a tal da flor da morte... O sertanejo é povo muito forte, rico. É arroz com baru, é galinha e macarrão com urucum. É maxixe. É tapioca e suco de maracujá do cerrado. É bolo de buriti e mascar pau-doce. É se banhar na água fria de vereda. É fogueira e olhar pro céu e ver aquela imensidão de estrelas. O sertão, pra mim, é a vida. “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.” Foi o que Rosa nos ensinou.

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
6º DIA - 28 km

De Ribeirão de Areia a Chapada Gaúcha


Último acampamento. Agora é rumar para o fim. Mas também hora de mergulhar no destino. Ribeirão de Areia é pintada de amor. O sertão é o bastar-se de pouco, é viver com simplicidade. Feliz. É ser recebido e receber. Seguimos caminho, subindo. Aliás, desde Sagarana subimos. Mas, antes de chegar, uma descida. O Vão dos Buracos. Um lugar quase inacreditável. Último portal: “O vau do vão, o dê de Deus e o tao do Tão”. Dizem que foi um papel achado escrito por Riobaldo. Enigma é enigma. Último almoço com os amigos. Sento na cozinha da casa de Dona Rosa. O povo do vale é assim: recebe a todos humildemente, sem perguntar, sem avaliar e sem julgar. Hospitaleiros, como seu Dorival e dona Maria (foto). Subimos para o último pôr do sol. Paredes do vão são amarelas, vermelhas, roxas. Todos se emocionam ao chegar ao topo. Última chamada. “Sertãooo...”, respondo forte, para ecoar pelo mundo, com a palavra que substituiu o tradicional “presente”. “Ninguém atravessa essa paisagem impunemente – ao final. Revela-se e apura-se. Que o sertão está dentro da gente.”  Verdade, seu Rosa.





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