Tudo aqui tem história, significado e importância – de uma fechadura de estação ferroviária à chuteira da Seleção Brasileira campeã da Copa de 1958, do primeiro celular usado em Belo Horizonte à menor televisão fabricada, acompanhada de lente de aumento, ou da coleção de cinco mil chaveiros a objetos úteis e divertidos, como secador de unhas, cabide de luvas ou galocha para sapato de salto alto. No recém-criado Museu do Cotidiano, no Bairro Funcionários, Região Centro-Sul da capital, o visitante encontra peças do mundo inteiro – para ser quase exato, cerca de 100 mil – garimpadas em ferro-velho, topa-tudo, antiquário, estabelecimentos comerciais e até em lixeiras e caçambas de entulho, em Minas. À frente da iniciativa está Antônio Carlos Figueiredo, guardião apaixonado, observador dos costumes urbanos e, desde a infância, com o olhar clínico para adquirir bens de interesse cultural.
“O fundamental é a função da peça, a peculiaridade, o diferencial. E apresentar também a evolução, as mudanças ao longo do tempo. Na minha mesa de trabalho, por exemplo, há um torno de bronze – alguém já ouviu falar em torno de bronze? –, a caderneta de um velho armazém localizado na Avenida Paraopeba, atual Augusto de Lima, no Centro da cidade, cujo telefone era o número 14, e um minicatálogo telefônico de 1971 distribuído como brinde por uma empresa”, mostra o criador do museu. Com seu tradicional chapéu branco, ele se apressa a dizer que não acumula, nem coleciona, muito menos é antiquário. “Sou objeteiro”, afirma satisfeito com o neologismo inventado para sua missão. E, determinado, avisa que o museu é totalmente analógico, físico, sem toque virtual.
Para clarear o ambiente, Antônio Carlos transformou em luminária um antigo aparelho de raios X odontológico, de 1953, então pertencente à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E como tudo tem uma história, ele conta que o equipamento foi adquirido pelo dono de um ferro-velho num leilão da universidade, e depois comprado por ele. “Mas logo vi que o aparelho estava com a lâmpada original e, para, não descartá-la no meio ambiente, devolvi à instituição federal.” Da mesma forma, o objeteiro vai entregar, em Sabará, peças do acervo da estação ferroviária, como sino, carrinho de bagagens, carrinho de mão e as placas de sinalização. “Se está aqui e é de interesse de alguém, tenho o maior interesse em entregar ou ceder temporariamente”, afirma Antônio Carlos.
MAMADEIRA Nos labirintos existentes atrás da porta de aço, ainda sem placa do museu, e tendo o proprietário como guia, é possível fazer descobertas centímetro a centímetro. Às vezes, os olhos do visitante brilham e o sorriso não escapa tal a surpresa. “Objetos têm energia, e um vai atraindo o outro”, avisa ele, para esclarecer que peças semelhantes acabam se agregando. Num canto, ainda à espera de prateleira, estão três pias de trem de ferro, da mesma forma que há aparelhos de televisão, como o primeiro giratório de fabricação norte-americana, de 1953, dezenas de bicicletas, máquinas fotográficas e de filmagem, livros, louças, lustres, rádios de válvula, um modelo a pilha, menor e acoplado a um porta-papel higiênico, chuveiro a álcool, e fogão elétrico a chapa, de 1940.
Economista de formação, nascido “na segunda metade da década de 1940”, natural de Ouro Preto, na Região Central, e residente na capital desde os 5 anos, Antônio Carlos mostra amor paternal pelos objetos e, sem herdeiros, avisa que eles são “seus filhos”. Caminhando pelos estreitos corredores, recorda a primeira peça que entrou para o acervo. “Foi ainda em Ouro Preto, eu tinha de 4 para 5 anos, e, naqueles tempos, as crianças eram amamentadas no peito até essa idade. Um dia, minha mãe me deu o leite numa mamadeira improvisada, feita numa garrafa de guaraná e uma chupeta. Daí em diante não parei mais de me interessar pelos objetos e sua funcionalidade.”
Mais tarde, em BH, o adolescente gostou de uma cadeira de barbeiro. Falou em casa sobre a vontade de levá-la e ouviu a mãe dizer que, para fazer isso, precisaria retirar a cama do quarto e dormir na cadeira. Sem pestanejar, comprou a peça e se acomodou sobre o seu objeto de desejo por muito tempo. O caso curioso é a senha para Antônio Carlos discorrer sobre a evolução do que mostra no museu. “Tenho vários tipos de cadeira de barbeiro e balanças de açougue. As pessoas podem sentir as alterações, os tipos produzidos. Minha luta é contra a obsolescência.” Sempre de olho em estabelecimentos comerciais que cerram as portas e prédios que saem de cena, ele conta que todos os dias faz a ronda para encontrar novidades e raridades. Assim, guarda a placa do Supermercado Aimoré, que funcionava no Mercado Central, e as letras do prédio, além de fotos, placas dos apartamentos e chave de luz do demolido Edifício Lucy, no Sion, onde morou Elke Maravilha, falecida no início da semana passada.
Lugar de destaque
A organização do Museu do Cotidiano, ainda com visitas marcadas com antecedência para pequenos grupos, começa pelo fundo do galpão. Antônio se orgulha em mostrar as prateleiras brancas, no total de mil metros lineares, que encontrou num ferro-velho e eram usadas como gôndola de supermercado. Bem distribuídas estão as peças de escritório, troféus sobre o cofre da antiga estação ferroviária de BH, bola de futebol autografada por Pelé, móveis de cartório, relógios, ourivesaria e lapidaria, tesouras de alfaiate e a seção de vícios, com isqueiros de todos os tamanhos e formatos, cachimbos e charutos. Um destaque é o macacão usado pelo piloto supercampeão Ayrton Senna (1960-1994) no Grande Prêmio do Japão, e adquirido da viúva, brasileira, do mecânico da equipe. No mezanino, já podem ser vistos os quadros do pintor Lorenzato (1900-1995).
Pegando um pequeno copo de aperitivo, o dono do museu pergunta e responde: “Sabe por que o guardei? É porque o relevo é do lado de dentro, e não de fora. Assim, também mantive esta placa “Ar condicionado”, simplesmente por estar escrito “Ar condiconado”. As placas também ocupam lugar de destaque, e algumas estão em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, na Praça da Liberdade. Certo de que é responsável por um tesouro cultural, Antônio Carlos cita uma que gosta muito: “Sapataria. Aqui não fazemo sapato só consertamo. As veiz faz”. Já no Espaço do Conhecimento UFMG, a exposição Processaber, aberta para visitação até 25 de setembro, exibe parte desse inestimável patrimônio.
Artistas plásticos, designers e estudantes, com seus professores, são visitantes contumazes do acervo. “Não quero um museu de antiguidades, mas em constante movimento. Tenho peças de 300 anos e também de dois dias atrás”, revela o guardião. Quando esteve no local, o ex-goleiro da Seleção Brasileira Emerson Leão se emocionou ao ver as tesouras de alfaiete, profissão que seu pai exerceu. Já o francês Pierre Catel, responsável por vários projetos museográficos em Minas, se espantou ao ver acervo de tal dimensão. “Ele disse que tenho objetos para 90 museus”, recorda Antônio Carlos com alegria.
Ao visitar o acervo, o secretário de estado de Cultura e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) Angelo Oswaldo, observou que “Antônio Carlos Figueiredo estabeleceu uma coleção inusitada, que brota do cotidiano de ontem ou do amanhã, ao buscar todo tipo de objeto que referencie a vida que passa. Com isso, criou um formidável acervo histórico, repleto de narrativas, no qual os espectadores encontrarão ou formarão as mais diversas perspectivas de compreensão do cotidiano”.
SERVIÇO
Museu do Cotidiano
Rua Bernardo Guimarães, 1.296, entre a Avenida João Pinheiro e a Rua Sergipe, perto da Praça da Liberdade
As visitas, com duração de no máximo duas horas, devem ser marcadas pelo telefone (31) 99612-2431 ou pelo e-mail museudocotidiano@hotmail.com
“O fundamental é a função da peça, a peculiaridade, o diferencial. E apresentar também a evolução, as mudanças ao longo do tempo. Na minha mesa de trabalho, por exemplo, há um torno de bronze – alguém já ouviu falar em torno de bronze? –, a caderneta de um velho armazém localizado na Avenida Paraopeba, atual Augusto de Lima, no Centro da cidade, cujo telefone era o número 14, e um minicatálogo telefônico de 1971 distribuído como brinde por uma empresa”, mostra o criador do museu. Com seu tradicional chapéu branco, ele se apressa a dizer que não acumula, nem coleciona, muito menos é antiquário. “Sou objeteiro”, afirma satisfeito com o neologismo inventado para sua missão. E, determinado, avisa que o museu é totalmente analógico, físico, sem toque virtual.
Para clarear o ambiente, Antônio Carlos transformou em luminária um antigo aparelho de raios X odontológico, de 1953, então pertencente à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E como tudo tem uma história, ele conta que o equipamento foi adquirido pelo dono de um ferro-velho num leilão da universidade, e depois comprado por ele. “Mas logo vi que o aparelho estava com a lâmpada original e, para, não descartá-la no meio ambiente, devolvi à instituição federal.” Da mesma forma, o objeteiro vai entregar, em Sabará, peças do acervo da estação ferroviária, como sino, carrinho de bagagens, carrinho de mão e as placas de sinalização. “Se está aqui e é de interesse de alguém, tenho o maior interesse em entregar ou ceder temporariamente”, afirma Antônio Carlos.
MAMADEIRA Nos labirintos existentes atrás da porta de aço, ainda sem placa do museu, e tendo o proprietário como guia, é possível fazer descobertas centímetro a centímetro. Às vezes, os olhos do visitante brilham e o sorriso não escapa tal a surpresa. “Objetos têm energia, e um vai atraindo o outro”, avisa ele, para esclarecer que peças semelhantes acabam se agregando. Num canto, ainda à espera de prateleira, estão três pias de trem de ferro, da mesma forma que há aparelhos de televisão, como o primeiro giratório de fabricação norte-americana, de 1953, dezenas de bicicletas, máquinas fotográficas e de filmagem, livros, louças, lustres, rádios de válvula, um modelo a pilha, menor e acoplado a um porta-papel higiênico, chuveiro a álcool, e fogão elétrico a chapa, de 1940.
Economista de formação, nascido “na segunda metade da década de 1940”, natural de Ouro Preto, na Região Central, e residente na capital desde os 5 anos, Antônio Carlos mostra amor paternal pelos objetos e, sem herdeiros, avisa que eles são “seus filhos”. Caminhando pelos estreitos corredores, recorda a primeira peça que entrou para o acervo. “Foi ainda em Ouro Preto, eu tinha de 4 para 5 anos, e, naqueles tempos, as crianças eram amamentadas no peito até essa idade. Um dia, minha mãe me deu o leite numa mamadeira improvisada, feita numa garrafa de guaraná e uma chupeta. Daí em diante não parei mais de me interessar pelos objetos e sua funcionalidade.”
Mais tarde, em BH, o adolescente gostou de uma cadeira de barbeiro. Falou em casa sobre a vontade de levá-la e ouviu a mãe dizer que, para fazer isso, precisaria retirar a cama do quarto e dormir na cadeira. Sem pestanejar, comprou a peça e se acomodou sobre o seu objeto de desejo por muito tempo. O caso curioso é a senha para Antônio Carlos discorrer sobre a evolução do que mostra no museu. “Tenho vários tipos de cadeira de barbeiro e balanças de açougue. As pessoas podem sentir as alterações, os tipos produzidos. Minha luta é contra a obsolescência.” Sempre de olho em estabelecimentos comerciais que cerram as portas e prédios que saem de cena, ele conta que todos os dias faz a ronda para encontrar novidades e raridades. Assim, guarda a placa do Supermercado Aimoré, que funcionava no Mercado Central, e as letras do prédio, além de fotos, placas dos apartamentos e chave de luz do demolido Edifício Lucy, no Sion, onde morou Elke Maravilha, falecida no início da semana passada.
Lugar de destaque
A organização do Museu do Cotidiano, ainda com visitas marcadas com antecedência para pequenos grupos, começa pelo fundo do galpão. Antônio se orgulha em mostrar as prateleiras brancas, no total de mil metros lineares, que encontrou num ferro-velho e eram usadas como gôndola de supermercado. Bem distribuídas estão as peças de escritório, troféus sobre o cofre da antiga estação ferroviária de BH, bola de futebol autografada por Pelé, móveis de cartório, relógios, ourivesaria e lapidaria, tesouras de alfaiate e a seção de vícios, com isqueiros de todos os tamanhos e formatos, cachimbos e charutos. Um destaque é o macacão usado pelo piloto supercampeão Ayrton Senna (1960-1994) no Grande Prêmio do Japão, e adquirido da viúva, brasileira, do mecânico da equipe. No mezanino, já podem ser vistos os quadros do pintor Lorenzato (1900-1995).
Pegando um pequeno copo de aperitivo, o dono do museu pergunta e responde: “Sabe por que o guardei? É porque o relevo é do lado de dentro, e não de fora. Assim, também mantive esta placa “Ar condicionado”, simplesmente por estar escrito “Ar condiconado”. As placas também ocupam lugar de destaque, e algumas estão em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, na Praça da Liberdade. Certo de que é responsável por um tesouro cultural, Antônio Carlos cita uma que gosta muito: “Sapataria. Aqui não fazemo sapato só consertamo. As veiz faz”. Já no Espaço do Conhecimento UFMG, a exposição Processaber, aberta para visitação até 25 de setembro, exibe parte desse inestimável patrimônio.
Artistas plásticos, designers e estudantes, com seus professores, são visitantes contumazes do acervo. “Não quero um museu de antiguidades, mas em constante movimento. Tenho peças de 300 anos e também de dois dias atrás”, revela o guardião. Quando esteve no local, o ex-goleiro da Seleção Brasileira Emerson Leão se emocionou ao ver as tesouras de alfaiete, profissão que seu pai exerceu. Já o francês Pierre Catel, responsável por vários projetos museográficos em Minas, se espantou ao ver acervo de tal dimensão. “Ele disse que tenho objetos para 90 museus”, recorda Antônio Carlos com alegria.
Ao visitar o acervo, o secretário de estado de Cultura e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) Angelo Oswaldo, observou que “Antônio Carlos Figueiredo estabeleceu uma coleção inusitada, que brota do cotidiano de ontem ou do amanhã, ao buscar todo tipo de objeto que referencie a vida que passa. Com isso, criou um formidável acervo histórico, repleto de narrativas, no qual os espectadores encontrarão ou formarão as mais diversas perspectivas de compreensão do cotidiano”.
SERVIÇO
Museu do Cotidiano
Rua Bernardo Guimarães, 1.296, entre a Avenida João Pinheiro e a Rua Sergipe, perto da Praça da Liberdade
As visitas, com duração de no máximo duas horas, devem ser marcadas pelo telefone (31) 99612-2431 ou pelo e-mail museudocotidiano@hotmail.com