Memória afetiva, histórias de família e objetos que passam de geração a geração – sem perder a ternura, jamais. Quem assistiu ao filme Aquarius, em cartaz na capital, certamente notou uma cômoda que pertencera ao quarto de uma mulher libertária, Lúcia, e, décadas depois, à sala de visitas da sobrinha querida, Clara, interpretada pela atriz Sônia Braga. Testemunha de cenas de amor, de festas, encontros da parentada e de outras celebrações, o móvel de madeira com gavetas ganha destaque em cena para mostrar sua importância na trajetória de cada personagem. Em Belo Horizonte, a vida imita a arte e a arte imita a vida: com desvelo e senso de história, pais, filhos e netos preservam mobília e objetos de antepassados, certos de que, além de boas recordações, mantêm a unidade familiar e trazem boas energias.
No apartamento do Bairro Luxemburgo, na Região Centro-Sul, a desembargadora Juliana Campos Horta Andrade, “nascida e criada em BH”, mantém um escritório doméstico com mesa e cadeira giratória dos anos 1920, que pertenceram ao pai, Raul Machado Horta (1923-2005), advogado de renome e professor catedrático de direito constitucionalista. Mas antes de chegar a ele, a cadeira e o bureau, como era chamado esse tipo de mesa de trabalho, pertenceram ao avô de Juliana, Milton Campos (1900-1972), ex-governador de Minas, professor, jornalista e advogado.
Hoje dividindo os móveis e a biblioteca com a filha Beatriz, de 22 anos, estudante de direito, Juliana, viúva, conta que o local a inspira, ainda mais porque ali está parte dos livros deixados pelo pai, que era casado com Regina Campos Horta, filha de Milton Campos “Quem algum dia esteve no escritório do meu avô, na Rua Tomás Antônio Gonzaga, certamente se lembra desse bureau”, afirma com suavidade. “Tudo isso só traz boas energias para esse ambiente no qual trabalho e estudo. Toca a alma da gente, revigora. Às vezes lembro-me de quando era criança, vendo meu avô e depois meu pai atrás desta mesa”, recorda-se.
Juliana ainda não viu o filme Aquarius dirigido pelo pernambucano Kléber Mendonça Filho, mas pretende assisti-lo tão logo seja possível. O comentário se dilui no ar quando ela contempla a superfície da mesa marcada pelo tempo, na forma de manchas azuis das velhas canetas-tinteiro. “Os móveis transmitem aconchego. Eles estiveram presentes nos momentos de glória e decepção, de decisões importantes enfim, da história. Uma vez, vi uma exposição de móveis e havia uma cadeira igualzinha a esta. Aí, fiquei toda feliz por ter um modelo original.”
DUAS GERAÇÕES Aos 90 anos, Dóris de Jesus Lima de Sá Fortes, viúva, mantém lucidez invejável, bom humor e muita alegria de viver. Natural de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, e residente em BH há mais de 60 anos, a simpática senhora acomoda, na sala de visitas da casa no Bairro Gutierrez, na Região Oeste, quatro cadeiras de palhinha, com desenhos de flores em marchetaria, e um móvel decorativo de madeira escura. O conjunto de cadeiras pertenceu ao bisavô do seu marido, José Antônio de Sá Fortes, proprietário da Fazenda Monte Belo, em Barbacena, enquanto a mesa foi da mãe dela, Nayde Lobato.
“É uma lembrança de família. Cada vez que passa para uma nova geração, vai contando uma história”, diz dona Dóris, ao lado do neto Otávio Sá Fortes, de 22, estudante de medicina. Para ele, cada peça é referência, memória. “Muita gente não dá valor, mas é preciso entender que os objetos remetem às nossas origens, ao que vivemos”, afirma o jovem. A matriarca explica que sempre foi de “guardar coisas” e, futuramente, tudo vai pertencer aos filhos e netos. Na sala espaçosa, que dá para um pequeno jardim interno, dona Dóris, abraçada ao neto Otávio, ressalta que tem outros objetos de família, incluindo uma molheira, com as letras do sobrenome (SF), também herança da Fazenda Belo Monte.
RETRATOS Muitas pessoas preferem dispor de móveis e outros objetos, entregar para antiquários, enfim, passar adiante o que herdaram. Não é o caso da aposentada Therezinha Rebelo, solteira, moradora do Bairro Santo Antônio, na Região Centro-Sul. Na sala do apartamento, ela alinha cuidadosamente os porta-retratos com registros da família, sobre um móvel de peroba-do-campo, que era da mãe, Matilde.
Cada retrato traz uma história: pais e filhos juntos, passeios em meados do século passado na Avenida Afonso Pena, “em frente a Igreja de São José”, abraços nos pais Francisco e Matilde e carinho de irmãos. “O tempo passa, hoje ficamos só eu e meu irmão Hercílio”, revela, com uma pontinha de saudade. “Veja só, esta foto dos meus pais está sumindo...” Mas é o móvel bem cuidado que traz as melhores recordações. “É uma console, pode ser usado como aparador em refeições. Ele fica maior, basta puxar uma parte da madeira”, diz Therezinha, deslizando a mão sobre a madeira.
Na sala de jantar, a aposentada mostra uma sopeira de porcelana branca com desenhos escuros. Está tudo perfeito, nada quebrado, tem a tampa e a concha. “Era um aparelho de jantar enorme. Ficaram só a sopeira e alguns pratos. Há muitos anos, meus pais ofereceram um jantar. Depois que tudo foi lavado e posto para secar, houve uma surpresa desagradável, pois a maior parte se quebrou”, conta.
O episódio, no entanto, não serve para tirar as melhores lembranças. “Era um tempo tão bom, de alegria e família reunida. O que temos hoje nos ajuda a manter a família mais perto”, faz questão de ressaltar.