O artigo determina que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O mesmo pedido foi feito pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) e, por isso, as ações serão julgadas em conjunto. Na ADC 43, a defesa do PEN adotou ainda tese de delegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a última palavra sobre a culpabilidade.
O advogado Lenio Streck, pós-doutor em direito constitucional, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e da Universidade Estácio de Sá, no Rio Grande do Sul, e um dos subscritores da ADC 44, diz que não se trata de contestar a execução da pena em segunda instância, mas de cumprir a Constituição. Ele explica que o STF passou a respeitar o que diz a Constituição em 2009 (princípio da presunção de inocência) e, a partir daí, houve uma virada jurisprudencial. Em 2011, o Parlamento aprovou o artigo 283, do Código de Processo Penal, em conformidade com o decidido em 2009 pelo Supremo.
“Isso durou até fevereiro de 2016, quando o STF girou sobre si mesmo. Ou seja, voltou à posição anterior a 2009. Por isso, a OAB ingressou com a Ação Declaratória de Constitucionalidade 44, para que o STF diga que onde está escrito presunção da inocência leia-se presunção da inocência”, afirma. “Parece meio óbvio isso, mas é assim. O que queremos é que o STF diga se o artigo 283 do código de processo vale ou não vale. Chamamos a isso de ‘constitucionalidade espelhada’, porque o 283 é o espelho do que diz o artigo 5, inciso LVII, da Constituição”, acrescenta.
Para o jurista, as pessoas menos favorecidas podem ser as mais prejudicadas com a determinação de prisão em segunda instância. “Se o STF negar a ação que ingressamos, milhares de pessoas poderão ser presas injustamente, na maioria pobres”, afirma. Streck estima que já há dezenas de réus que esperavam recurso em liberdade presos depois do entendimento do STF.
Streck ressalta que o problema recai ainda nas decisões de segundo grau. “O STJ altera mais de 50% dos recursos vindos de São Paulo, com influência direta na execução da pena. Isso também atinge as decisões de segundo grau, que erram no regime de cumprimento de pena. Os tribunais de Justiça aplicam regime fechado quando o regime deve ser semiaberto. Só nisso já temos milhares de casos”, relata. Ele afirma que a maioria dos tribunais dos estados não segue a jurisprudência do STJ e do STF e, para corrigir essa falha, cabem os recursos especiais, extraordinários e habeas corpus.
Danos O advogado constitucionalista Ives Gandra da Silva Martins e o advogado e ex-presidente do STF Cezar Peluso também já se manifestaram sobre o assunto. Ives Gandra ressaltou que, em tribunais de segunda instância, há inúmeras câmaras penais, podendo haver divergência nas decisões tomadas, com absolvições e condenações para o mesmo tipo de crime. Segundo ele, apenas o Tribunal de Justiça de São Paulo tem 360 desembargadores, sendo a maior corte de julgamento do mundo. Logo, ele acrescentou, as pessoas podem ser condenadas em segunda instância e absolvidas em instância superior, ensejando pedidos de indenização por dano moral e físico em face dos governos que as encarceraram.
Já Cezar Peluso se manifestou sobre o que considera “juízo antecipado de culpabilidade do réu que ainda não foi julgado, mas que já sofre uma pena – a pena da prisão preventiva –, sem que nada possa reparar-lhe a injustiça da subtração da liberdade, quando venha a ser declarado inocente.”
Relator defende espera por decisão definitiva
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou no início de setembro o julgamento de medida cautelar em ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) com o objetivo declarar a legitimidade constitucional da nova redação do artigo 283. Único a votar naquela sessão, o ministro Marco Aurélio Mello, relator das duas ações, reconheceu a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP).
O ministro votou no sentido de determinar a suspensão de execução provisória da pena que não tenha transitado em julgado e, ainda, pela libertação dos réus que tenham sido presos por causa do desprovimento de apelação e tenham recorrido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), com exceção aos casos enquadráveis no artigo 312 do CPP, que trata da prisão preventiva. Segundo ele, a constatação da culpa só ocorre com o julgamento em última instância.
O ministro destacou que o alto grau de reversão das sentenças penais condenatórias no âmbito do STJ demonstra a necessidade de se esperar o trânsito em julgado para iniciar a execução da pena. Ele argumentou que, segundo dados do Relatório Estatístico do STJ, a taxa média de sucesso dos recursos especiais em matéria criminal variou, no período de 2008 a 2015, entre 29,30% e 49,31%.
Salientou ainda que números apresentados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo apontam que, em fevereiro de 2015, 54% dos recursos especiais interpostos pela instituição foram ao menos parcialmente providos pelo STJ. Em março daquele ano, a taxa de êxito alcançou 65%. Os mesmos índices são em relação aos pedidos de habeas corpus, na razão de 48% em 2015 e de 49% até abril de 2016.
Defensoria A assessora institucional da Defensoria Pública Geral de Minas, Cibele Cristina Maffia Lopes, ressalta que reafirmar o significado da presunção de inocência é importante para mostrar que não é encarcerando que o problema da criminalidade será resolvido. “Se há motivos para prender, sendo pobre ou pessoa de posses, será preso. O que precisa ser feito é aplicar a lei com rigor. Não é a quantidade de recursos que vai mudar uma decisão. Se a prisão preventiva fosse aplicada de forma correta, inibiria esse número. É importante o resgate da Constituição. O sistema só considera culpado aquele que não tem mais recurso para ser considerado culpado”, diz.
Cibele acrescenta que as prisões logo depois da segunda instância podem contribuir ainda com outro problema: o da superlotação de presídios. “O que mais nos assusta é que não sabemos até que ponto ela é relacionada à aplicação indevida da lei ou até que ponto está faltando presídio. Não temos essa conta, porque não sabemos como o mau uso das leis interfere na superlotação”, destaca.
Mudança de entendimento
Desde 2009, o réu podia recorrer em liberdade ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao próprio Supremo Tribunal Federal (STF) e só começava a cumprir pena quando acabassem os recursos. Enquanto isso, só era mantido encarcerado por prisão preventiva (quando o juiz entende que ele poderia fugir, atrapalhar investigação ou continuar cometendo crimes). Mas, em fevereiro deste ano, por 7 votos a 4, o Supremo entendeu que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência. Para o relator do caso, ministro Teori Zavascki, a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena. O fato se deu durante julgamento do Habeas Corpus (HC) 126.292, que foi negado. O caso envolve um ajudante-geral condenado a pena de 5 anos e 4 meses de reclusão pelo crime de roubo qualificado. Depois da condenação em primeiro grau, a defesa recorreu ao TJ-SP, que negou provimento ao recurso e determinou a expedição de mandado de prisão.
“Se o STF negar a ação que ingressamos, milhares de pessoas poderão ser presas injustamente, na maioria pobres”
Lenio Streck, advogado, professor, pós-doutor em direito constitucional e um dos subscritores da ação