Jornal Estado de Minas

Famílias dão a receita de devoção que une parentes em torno da fé em Nossa Senhora


Caeté – O vento frio da tarde crispa a pele, as nuvens escuras parecem encostar no chão e, às vezes, uma leve camada de neblina esconde a ermida do século 18, guardiã da imagem da padroeira de Minas, Nossa Senhora da Piedade, esculpida por Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814). É nesse clima de início de tarde, perto do começo da missa das 15h, que uma família de Itabira, na Região Central, chega ao topo da Serra da Piedade. “Sempre que estamos voltando para casa, vindo da capital, fazemos questão de passar por aqui”, conta Lamartine do Nascimento, ao lado da mulher, Cícera Talita Barbosa, da filha de 3 anos, Cecília, da sogra, Lourdes da Cruz Barbosa, e do irmão dela, Paulo da Cruz Barbosa, o único do grupo que mora em Santa Luzia.




Visitas como a da família de Itabira são permanentes na Serra da Piedade que, em 2017, vai celebrar 250 anos de peregrinação. Pouco antes de começar a celebração eucarística, o grupo se aproxima da imagem barroca e não esconde a emoção. “É a primeira vez que chego tão perto”, revela Lamartine. Seguindo a tradição católica da família, a pequena Cecília fica de mãos postas, lançando o olhar em direção ao altar-mor, no qual está o Cristo deitado no colo da mãe. Depois, a menina constata, falando baixinho com os pais: “Está saindo sangue dele”.

“A devoção vem de longa data, foi passando de pai para filho. Temos que mantê-la”, observa a avó da garota, que tem muito a agradecer à santa protetora. “Nossa Senhora da Piedade me ajudou a comprar minha casa. Agora, vim aqui reforçar um pedido, pois preciso vender um terreno”, conta Lourdes. “Cumpro a promessa e venho agradecer.” Para Cícera, tudo o que aprendeu deve ser transmitido à filha, fazendo mover, com o amor a Deus, a ciranda familiar da fé.
Nilda de Almeida, com a filha Alyne e a imagem da padroeira: "Pede à Mãe que o Filho atende" (foto: RODRIGO CLEMENTE/EM/D.A PRESS)

Devoto de Nossa Senhora da Piedade e de São José, o arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, explica que “Maria é a discípula mais perfeita do Senhor, seu filho”. Segundo ele, “em Maria se dá a máxima realização da vivência cristã, a obediência à vontade de Deus, meditação constante da palavra e ações de Jesus”. “Deus quis uma mãe para o Seu Filho e, assim, em Maria, realiza-se a mais completa expressão da obra da criação, quando, coberta pela invisível presença amorosa do Espírito Santo, torna-se a mãe do Salvador do mundo”, acrescenta.



Dom Walmor conta ainda que “Nossa Senhora caminha com Jesus, acompanhando-o no seu crescimento, de modo exemplar, no desempenho pedagógico de quem foi escolhida para ser a mãe de nosso Mestre e Senhor”. O Documento de Aparecida, ressalta, recorda que Maria é a primeira integrante da comunidade dos que creem em Cristo, e também se faz colaboradora do renascimento espiritual dos discípulos. “Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé, como mãe de Cristo e depois dos discípulos. Por isso, a devoção mariana, em tantos lugares, a partir dos muitos títulos dedicados a Nossa Senhora, a exemplo da padroeira de Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade, é um dom de Deus. Maria, mãe e discípula exemplar, nos ajuda a seguir Jesus Cristo, mostrando que o Mestre é o centro das nossas vidas, nosso Salvador e Senhor”, diz o arcebispo.

BARRIGA DA MAMÃE Durante todo o período de gravidez, a empresária Lucinara Inácio de Lima, moradora de Caeté, seguiu um ritual com o marido, Manuel. “Desde o momento em que soubemos que eu seria mãe, ele passou a se ajoelhar e rezar todos os dias sobre minha barriga”, conta a devota de Nossa Senhora Aparecida e de Nossa Senhora da Piedade. Como resultado está a menina Marina Alves Lima Vicente, de 11 anos, que segue o caminho dos pais em devoção.

O despertar da menina para a religião ocorreu pelas mãos de uma prima da mãe, que a convidou para ir à igreja. “Ela começou a se sobressair dia após dia, mas nunca interferi”, afirma Lucinara. A exemplo de Custódia Gonçalves de Queiroz, de 100 anos, devota de Nossa Senhora Aparecida, a empresária está certa de que o maior milagre é o da vida. E lembra que, quando a filha tinha 5 anos, esteve prestes a operar de adenoide. “Rezei muito para que nada de mau ocorresse e tive grande surpresa ao ouvir da médica que a cirurgia não precisaria mais ser feita. Foi uma grande bênção”, diz Lucinara.





 

Com a vela acesa, Custódia Gonçalves de Queiroz segue à frente de uma pequena procissão familiar no corredor que vai do quarto à sala. Perto da televisão está outro cantinho que reúne os parentes, juntando símbolos religiosos e a imagem de Nossa Senhora Aparecida, que traz no manto azul algumas marcas do tempo. “Nossa família é grande, tem mais de 80 pessoas, e aqui sempre tem a reza do terço. Uma vez por mês, é na casa de um parente”, conta o neto Geraldo. Para a matriarca, a satisfação é imensa. “Família é tudo. Além dos meus nove filhos, criei cinco netos, filhos da minha filha mais velha, que morreu cedo. A gente tem os filhos, mas quem cria é Deus”, afirma, com sabedoria e sem sinais de preocupação. Após um segundo de silêncio, ela proclama, sem medo: “Aqui em casa não existe problema”.

 

Gerações diante de um mesmo altar

Olhando para a filha Isabella, Geraldo revela que ela nasceu “graças às orações a Nossa Senhora Aparecida”, uma vez que a mulher teve duas gestações malsucedidas. “É a força da fé”, resume. Os bisnetos ouvem os ensinamentos de Custódia e Guilherme recorda que, quando fez uma cirurgia nos olhos, a “bisa” rezou para Santa Luzia – protetora da visão e também presente no altar doméstico, em um quadro. “A devoção é importante em todos os momentos da vida”, observa Isabella, em total harmonia com a irmã Ana Clara. Atenta à conversa, Custódia diz que reza todos os dias para Deus iluminar os “chefes” (de governo), pois o Brasil está muito ruim e as famílias vivem desnorteadas.

Família de Custódia de Queiroz acumula graças ligadas à devoção (foto: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS)

Na despedida, não poderia faltar a pergunta: “Qual o segredo de se viver 100 anos com tanta disposição?”. A matriarca sorri e Raimunda entrega: “Mamãe é louca por torresmo”. O riso é geral e vem o arremate. “E ela não tem problema de colesterol nem de coração, viu?”, orgulha-se a filha.



CARAVANAS Que a fé move montanhas e remove uma série de obstáculos, nunca teve dúvidas a dona de casa Nilda Martins de Almeida, casada e mãe de Alyne, de 24, formada em tecnologia de produção, e Tatiane, de 28, com diploma de enfermagem, moradoras do Bairro Milionários, na Região do Barreiro, em BH. Feliz na sua devoção, ela ressalta: “Meu maior orgulho é minha mãe ter me ensinado o amor a Nossa Senhora Aparecida”.

Na estante da sala, ao lado da filha Alyne, ela mostra o retrato da mãe, Lourdes, falecida há três anos, e conta que, um ano antes de morrer, ela conseguiu manter o costume familiar de, no mês de outubro, levar os 10 filhos a Aparecida (SP). “Foi realmente um milagre, pois ela já estava doente. Mesmo assim, vestimos a camisa da caravana e fomos juntos”, conta a dona de casa, que segura, com a filha, a imagem da protetora.

Olhando a padroeira, Nilda repete a frase que tem sido estrela-guia na vida. “Pede à Mãe que o Filho atende”, o que significa rogar a Nossa Senhora e obter as graças de Jesus Cristo. “Desde solteira tenho fé. Ouvi muito a Rádio Aparecida e recordo-me do padre Vitor dizendo: ‘Os ponteiros apontam para o infinito. São 12h...’”, relembra Nilda, com um sorriso que ilumina o rosto. Desempregada, a exemplo da irmã, Alyne espera conseguir logo um trabalho. Para isso, claro, tem rezado. “Tenho marcada uma entrevista. Estou confiante”, segreda a jovem, com uma ressalva: “Não gosto de pedir e sim de agradecer”.