Uma simples preposição exigiu muitas horas de reflexão, o emprego correto das palavras – “o amor é paciente ou tolerante?” – levou a longas conversas e a busca pela fidelidade ao texto sagrado a estudos de mais de 10 anos. Com a alegria de quem cumpriu a missão e a sabedoria dos mestres no ofício, a irmã Zuleica Silvano, de 48 anos, paulista residente em Belo Horizonte há 16, fez um trabalho que a torna pioneira no país: é a primeira brasileira a traduzir a Bíblia – Novo Testamento diretamente do grego para o português. Integrante de um grupo de 10 pessoas, mais especificamente os exegetas, ela se dedicou às cartas escritas por São Paulo (Gálatas, 1ª e 2ª aos Coríntios e Filêmon) e a Carta de Judas, sem autoria conhecida. “Participar do projeto foi um misto de privilégio e responsabilidade”, conta a religiosa da congregação das irmãs paulinas, cujo carisma é evangelizar por meio da comunicação.
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Já na 1ª Carta aos Coríntios, há a expressão “correção fraterna”, que se assemelha a uma questão moral, punitiva, embora o original seja bem diferente, tem a ver com o jeito de se colocar um osso no lugar, a maneira de se recompor uma parte do corpo. “A todo momento, me deparei com situações ambíguas e fui ampliando a interpretação”, diz a religiosa. Para ela, é importante um olhar feminino nas traduções e também ecumênico. Nesse projeto da editora, participaram, na tradução do Antigo Testamento a ser ainda publicado, católicos e outras denominações religiosas, como pesquisadores de tradição evangélica e judeus.
SEM MACHISMO No escritório da Paulinas na Avenida Afonso Pena, na Região Centro-Sul da capital, a irmã Zuleica fala da sua admiração por São Paulo, “que não foi um dos 12 apóstolos, mas se sentia como um, no sentido de seguidor de Cristo”. E desfaz os conceitos de que São Paulo teria posições machistas.
Esse incômodo também se voltou para os versículos 34 e 35 do capítulo 14, também na 1ª Carta: “...as mulheres silenciem nas assembleias, porque não lhes é permitido falar, mas sejam obedientes, conforme diz, também, a lei. Porém, se desejam aprender algo, perguntem aos próprios maridos em casa, visto que é inconveniente para a mulher falar na assembleia”. Ao ler o trecho, a irmã Zuleica destaca que tais versículos são considerados um acréscimo posterior ao escrito, “por refletirem uma concepção alheia ao pensamento de Paulo”.
No texto referente às bodas de Caná, na Carta de João, capítulo 2, versículo de 1 a 11, traduzido por outro exegeta ou especialista em interpretação de obra literária, há uma curiosidade que, com bom humor, a religiosa faz questão de relatar. Em algumas publicações, está escrito “serve ao mestre-sala”, que, para os brasileiros, teria mais a ver com escola de samba. Para não dar duplo sentido, o tradutor preferiu “mestre de cerimônias”.
De pé, diante de uma estante com edições variadas da Bíblia, a freira dá uma gostosa risada, quando o repórter pergunta se “São Paulo tinha sido um soldado romano”. Com segurança, ela afirma: “Não, ele não foi um soldado romano”. E acrescenta: “É interessante esse ponto, pois só ouvi esse tipo de pergunta em Minas e o porquê exato eu não sei.
EXPERIÊNCIAS FORTES Olhando para a biblista, impossível não se lembrar do livro de Moacyr Scliar que virou peça de teatro, A mulher que escreveu a Bíblia, só que, desta vez, é a mulher que traduziu a Bíblia. Ao ouvir a comparação, a irmã Zuleica apenas sorri e mostra as belas ilustrações da nova edição feitas por Claudio Pastro, especialista em arte sacra, que morreu na semana passada e deixou trabalhos no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida (SP).
Além da imersão no grego, aramaico e hebraico e no Novo Testamento, a freira viajou para lugares citados na Bíblia e hoje se entristece por muitos estarem destruídos, alguns não deixando nem rastros do passado. E confessa que, durante todo o período de trabalho, viveu “experiências fortes, procurando as palavras certas”. Em Coríntios 13, 4, ficou vários dias matutando se a melhor tradução para a palavra grega era tolerante ou paciente. Até que, um dia, conversando com um marceneiro, lhe perguntou: “O amor é paciente ou tolerante?”. Sem titubear, o homem respondeu: “Ser paciente é mais fácil. Tolerante é mais difícil”.
A edição, com direção editorial de duas mulheres (Bernadete Boff e Vera Ivanise Bombonatto), nasceu para comemorar o centenário da congregação das paulinas e, segundo a irmã Zuleica, teve para ela um sabor de missão, “por poder evangelizar pela comunicação”, e de desafio, por toda a pesquisa e estudo das línguas antigas. Para quem quer se iniciar no livro, independentemente de ser cristão ou não, a indicação é simples: “ler”. Na avaliação da tradutora, a Bíblia é uma grande obra, com poesia, drama, cartas, música, histórias e personagens. “É uma obra rica, de beleza literária, patrimônio cultural e um poço de humanidade. Fala das relações humanas, de caráter, do apocalipse, enfim, tem de tudo.”
Finalmente, a irmã lembra que “o grande desafio foi estabelecer um diálogo intercultural dentro do próprio texto bíblico e a diversidade de culturas dos leitores, pois tanto o tradutor ou a tradutora como os leitores são intérpretes do texto, carregando, portanto, seus condicionamentos, sua cultura, sua língua, seu gênero, sua classe, suas ideologias e sua localização histórico-contextual”.
O tempo e as palavras
Fora de contexto
» Nos textos da Bíblia em português, está escrito que “nós somos configurados em Cristo”, o que não faz muito sentido, pois a palavra configurado, hoje, tem mais a ver com informática. Em koine, configurado se refere ao processo de gestação, tem um sentido de humanização.
Sem castigo
» A expressão “correção fraterna”, que parece uma questão moral, punitiva, tem no original algo bem diferente. Tem a ver o jeito de se colocar um osso no lugar, de se recompor uma parte do corpo.
Origem e cabeça
» O versículo – “E quero que saibais que a origem de todo homem é Cristo, a origem da mulher é o homem e a origem de Cristo é Deus” – sempre fez algumas feministas criticarem São Paulo. A confusão é porque, em grego, a palavra kefale é a mesma para origem e cabeça, e, em algumas edições, ficou “a cabeça da mulher é o homem”.
Nem é dele
» O descontentamento de algumas feministas também se voltou para os versículos 34 e 35 do capítulo 14, também na 1ª Carta aos Coríntios: “... as mulheres silenciem nas assembleias, porque não lhes é permitido falar, mas sejam obedientes, conforme diz, também, a lei. Porém, se desejam aprender algo, perguntem aos próprios maridos em casa, visto que é inconveniente para a mulher falar na assembleia”.
Outro sentido
» No texto referente às bodas de Caná, na Carta de João, capítulo 2, versículo de 1 a 11, alguns já escreveram mestre-sala, que teria mais a ver com uma escola de samba. Na edição da Paulinas, vem mestre de cerimônias..