O trabalho é árduo e feito ao longo de todo o ano, como parte das atividades com 40 crianças e adolescentes de 6 a 14 anos na Creche das Rosinhas, localizada na Vila Nossa Senhora da Conceição, mantida pelo Grupo Espírita Francisco de Assis (Gefa), também da Serra. Tanta dedicação da meninada, que ensaia e participa ativamente do processo de montagem e criação, incluindo a escolha do tema e o texto, culmina na apresentação em um teatro de verdade, no fim do ano. Pelo segundo ano, a peça será exibida no Teatro Alterosa, no Bairro Floresta, Região Leste de BH.
Para esses meninos e meninas, o teatro é mais do que encenação. É um resgate, como é caso de Emily Vitória Barbosa Veloso, de 12 anos. A aluna do 7º ano do ensino fundamental vai pisar no palco pela primeira vez, interpretando Sininho. Por causa da peça, está aprendendo a deixar de lado a timidez, grande parte ligada a uma deficiência que tem na perna. “Às vezes não consigo ficar em pé, por isso, passo muito tempo sentada. Com o teatro, tenho que ir de um lado para o outro, o que me ajudou a desenvolver os movimentos”, diz. Na escola os resultados também são perceptíveis: “Presto mais atenção e ouço o que a professora fala. Aprendi mais coisas”.
O capitão Gancho é o adolescente Márcio Augusto Batista Goulart, aluno do 9º ano do ensino fundamental, que está no projeto há três anos. E não deu outra: ele se apaixonou pelo teatro. Vestir a fantasia, se produzir, ver o público... Tudo isso se tornou familiar. “Penso em ser um dos maiores atores do mundo”, afirma, em tom confiante. “Quando entro no palco é maravilhoso. Não sou mais o Márcio, sou realmente aquele personagem”, afirma. O garoto, que não queria saber de teatro quando começou, decidiu fazer o curso do Palácio das Artes. “O teatro me ajudou a pensar no que vou ser no futuro, a correr atrás”, relata.
Para dar vida a Wendy, a menina sonhadora que se juntou aos irmãos em uma grande aventura, Kessily Lorrane Cardoso Amorim, de 13, estudante do 7º ano, não mediu esforços. Essa é sua segunda peça. Ano passado, viveu a personagem Ana, da animação Frozen. “Fiquei muito emocionada na primeira vez. Fiquei com medo de errar a fala, mas a cada vez que entrava no palco ficava ainda mais feliz”, conta. A garota quer ser veterinária, atriz ou modelo, mas se impressiona com um sonho que tem corriqueiramente: que é uma bailarina, dançando com sapatilha de ponta, fazendo um solo sob os aplausos do público. “Faço aula de balé e já estou na ponta, mas não tive ainda a oportunidade de dançar”, lamenta.
A narradora da peça será Milena Araújo Siqueira, de 14, estudante do 8º ano. Em 2013, ela interpretou Dorothy, do clássico O mágico de Oz. “Esse papel é mais complicado, pois é difícil ter interpretação nas falas. É preciso prestar muita atenção para não errar”, diz. Depois das aulas de teatro, a menina aprendeu a se soltar e a conversar mais claramente. Na escola também teve resultados preciosos: “Comecei a ler. Antes não gostava”.
A caçulinha da turma, Emily Luísa Moura da Silva, de apenas 8 anos, aluna do 3º ano, viverá a princesa da trama. Encarando o palco pela terceira vez consecutiva, a menina sabe que quer ser atriz. Já Samara Alexandre Goulart, de 12, aluna do 6º ano, fará sua estreia e promete entrar em cena sem timidez. O personagem principal, Peter Pan, será interpretado por Víctor Ferreira da Silva, de 12, do 7º ano. “Teatro é um jeito de me soltar, aprender, conversar mais com as pessoas, arranjar mais amigos e mostrar aos outros que as pessoas podem ter talento”, ressalta. A pressão sentida por causa de tanta gente vendo o espetáculo é superada facilmente: “Penso que não posso errar, do contrário vou atrapalhar as pessoas que estão comigo”.
Realidade espelhada nos textos
No projeto Toda Quinta, um pedido da comunidade é prontamente atendido: levar sempre para dentro das peças a realidade dos meninos, uma maneira não só de se apropriarem do lugar onde vivem como também de expressar seu orgulho. Assim, Wendy dirá ao capitão Gancho que “o mal não compensa”. A frase não faz parte do roteiro original – foi elaborada pela menina Kessily Amorim, que interpreta a personagem, numa referência à violência a que está exposta a comunidade e como forma de vencer o preconceito.
Da mesma forma, o Brasil e a cidade de Belo Horizonte são evocados no texto. Peter Pan sai da Inglaterra, kpassa pela floresta amazônica, chega a BH, passando pelo Parque das Mangabeiras, até aterrissar no “nosso querido Serrão”, a maneira carinhosa com que os moradores se referem ao Aglomerado da Serra. “O mundo hoje dá muito valor à imagem e, com esse trabalho, os meninos vão se descobrindo. Na hora, fazem o papel deles e representam de fato o personagem”, afirma o diretor da Creche das Rosinhas, Newton Lobo.
O trabalho na instituição é feito no contraturno escolar. Ele inclui ainda aulas de percussão e atendimento a gestantes jovens, contando com o apoio de voluntários e de doações. Não há patrocínio. O teatro é feito com a renda arrecadada em bazares na própria comunidade. Outra unidade, de educação infantil, mantém convênio com a Prefeitura de BH para atendimento a 96 crianças de 6 meses a 5 anos e 11 meses de idade.
SERVIÇO
Peter Pan
Domingo, às 11h30, no Teatro Alterosa
(Avenida Assis Chateaubriand, 499, Floresta)
Entrada franca. Organizadores pedem que o público leve, se possível, alimentos não perecíveis (arroz, feijão, açúcar, achocolatado e óleo)