Quem se anima a subir na bicicleta e encarar movido apenas a pedal e determinação os 29 quilômetros que separam Juvenília, onde fica o ponto mais extremo de Minas Gerais, de Montalvânia – uma cidade que esconde histórias de uma riqueza que beira o inacreditável –, mal pode imaginar que vai reencenar nas pedaladas alguns dos caminhos de um de seus pioneiros. É na parte sombreada ao lado do banco na Praça Maomé, no Centro da cidade, que se encontra, ao lado da inseparável bicicleta azul, João Geólogo, precursor do descobrimento de sítios arqueológicos que ainda hoje recebem visitantes de todo o Brasil, interessados na rica arte rupestre da região.
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Mateiro, conhecedor da região, João Geólogo recebeu em 1967 do fundador a tarefa de localizar pinturas rupestres escondidas em formações rochosas na mata fechada, hoje em parte devastada pela pecuária. Missão dada, durante quatro anos o pioneiro percorreu sozinho trilhas de gado e pés de serra, pedalando uma bicicleta velha até onde os caminhos deixavam, depois se embrenhando no mato munido apenas de facão, lanterna, pão e latas de sardinha. Saía na segunda e voltava no sábado. Recebia por descoberta, e encontrava alguma coisa quase toda semana. Os achados reportava a Montalvão, que então avaliava “o que era e o que não era”.
As dezenas de cavernas e lapas exibindo painéis de arte rupestre encontradas graças às pedaladas, à persistência e às noites maldormidas do Geólogo revelaram sítios arqueológicos que há mais de 40 anos atraem estudiosos a Montalvânia.
Sem acreditar em Deus ou no diabo, Montalvão se transformou ao tomar conhecimento das inscrições e pinturas encontradas nas cavidades naturais espalhadas pelas matas vizinhas à cidade que fundara. Interpretou-as como sendo relatos de inovações e dicas tecnológicas a serem decifradas, numa leitura criativa que unia ciência, mitologia grega, divindades africanas, filosofia oriental e tecnologia extraterrestre. Vistos sob esse caleidoscópio cultural, os sítios arqueológicos seriam bancos de memória contando toda a história do universo – passado e futuro incluídos.
CAÇADA
Para descobrir mensagens de tamanha importância, como nas andanças que fazia ainda criança com o pai caçador – “quando às vezes não sobrava tempo, porque começava a entrar a noite” –, João Geólogo conta que se encostava a um paredão e fazia fogo na frente, à guisa de se proteger de animais selvagens, como porco queixada, tamanduá-bandeira e, principalmente, onça. “Tinha tudo isso, tudo uns animal perigoso, que enfrenta a pessoa conforme a hora, e destrangola a pessoa”, assevera.
Ele conta que, durante noites em claro, ouvia onças rondando, urrando, às vezes brigando entre si. “E eu ali ficava só, com o facão junto e uma lanterna alumiando pro lado delas, pro rumo delas abrir fora de mim. Conforme Deus me protegeu, eu enfrentei essa temporada toda, essa mão de obra aí”, descreve.
Preocupado com “o início da destruição” que hoje ameaça as cavernas, algumas já vandalizadas com rabiscos sobre as pinturas rupestres, João é seletivo com quem leva aos locais, batizados com nomes como Lapa Escrevida, Hidra de Seis Cabeças, Lapa de Mercúrio, Labirinto dos Deuses Astronautas, Abrigo do Dinossauro, entre outros. “Gosto do silêncio.
Pensadores a cada esquina
A filosofia em estado bruto de João Geólogo se encontra, em nível mais refinado, literalmente espalhada pelas ruas de Montalvânia. “Tracei meus pensamentos em forma de cidade”, escreveria Montalvão sobre o plano urbanístico desenhado em pleno sertão do Norte mineiro para a segunda cidade planejada do estado, depois de Belo Horizonte. Para os nomes das ruas foram escolhidos filósofos, profetas e pensadores, uma maneira de incentivar a população a estudar história universal, procurando saber quem eram. Para boa parte dos habitantes, no entanto, ruas como Heráclito, Lao Tsé ou Rosseau são apenas endereços difíceis de pronunciar. “Uns nomes horrorosos, que ninguém entende o que é. Antônio era meio doido”, entende Erotides Francisca, moradora antiga que conviveu com o fundador.
O resultado é que, na linguagem das ruas, ninguém conhece Rua Pascal, apenas a “Pascoal”. Lá, o nome do pai da psicanálise, Freud, não se pronuncia “Fróid”, mas como se lê na placa – Rua Freudi. O naturalista inglês Darwin as vezes é confundido com o renascentista italiano Da Vinci.
Diários da bicicleta
´Pioneiro sem saber’
Minha jornada pelo extremo Norte começa com a bike desmontada e enfaixada em plástico bolha, partindo de Belo Horizonte num ônibus para Montalvânia, última rodoviária de Minas. Chego no dia seguinte, para completar a jornada de carro até a divisa de Minas e Bahia. A partir de Feira da Mata (BA), a bicicleta é remontada e começo a pedalar com o sol se pondo pela BA-594, que segue sem asfalto até o entroncamento com a BR-030, também de terra, a sonhada Via Dom Bosco, que ligaria Brasília ao litoral baiano na Península de Maraú. De noitinha alcanço o Centro da pequena Juvenília, cidade mais setentrional do estado. Na sequência, preciso encarar trecho de quase 30 quilômetros até Montalvânia, onde incríveis histórias me aguardam. Entre os ciclistas, descubro João Geólogo e sua Monark Barra Circular azul, na qual leva amarrado álbum com fotos de décadas de expedições. Pioneiro sem saber, pedalou à frente de seu tempo, sem alforjes, pelas matas até onde conseguia. Em suas missões procurando sítios arqueológicos nas décadas de 60 e 70, lhe foi oferecido um cavalo, mas recusou, dando como certo que onças atacariam o animal amarrado.