Caminhando em meio aos casarões do Centro Histórico de Pitangui, considerada berço do Centro-Oeste mineiro, o escritor e compositor Jorge Mendes Guerra, de 70 anos, recorda os tempos de criança: “Minha vó puxava a guia, vínhamos aproximadamente 15 meninos, cada um com uma garrafinha d’água”. A seca era brava, ele lembra, e a turma se reunia numa cruz ao lado da estrada estreita, fazendo promessas para a alma de um certo escravo Ivo, pedindo chuva. Somente lá pelos 30 anos, ele conta, “é que fui tomar conhecimento e entender a história da estrada real, incluindo o valor que ela tem”.
Hoje, duas placas sinalizam o início do trecho da estrada histórica, no local conhecido como Reserva da Mata do Céu. A primeira avisa tratar-se de patrimônio histórico e determina que não se jogue lixo. A segunda informa que a reserva é protegida por lei, proibindo veículos motorizados, desmate e queima. Adverte ainda que infratores estariam sujeitos a punição por crime ambiental e termina com um número para denúncias.
Subindo pela trilha, em poucos minutos se percebe que os dizeres das placas são letra morta. Logo se escuta o ronco de motores se aproximando em velocidade. Trata-se da primeira de várias levas de motoqueiros levantando poeira na terra fina. Por vezes, é necessário se encostar em barrancos por segurança, para escapar das motos, com faróis ligados mas quase sem visibilidade.
Menos de meia hora de subida na direção da Serra da Cruz do Monte e a trilha alcança amontoados de entulho, sacos rasgados com lixo doméstico, garrafas quebradas, descarte de construção, pedaços de uma piscina de plástico, entre outros itens. No local funciona um bota-fora, onde o material é largado por conveniência, uma vez que a cidade conta com depósito regularizado. A reserva fica exposta ao risco de incêndio, com cinzas espalhadas ao redor do lixo parcialmente queimado.
Pesquisador dos mais de 300 anos de história do município e responsável pelo blog “Daqui de Pitanguy”, Vandeir Santos acredita que, pela importância histórica, a cidade “nunca teve o devido reconhecimento”. Fundada por bandeirantes paulistas reunidos após a derrota na Guerra dos Emboabas, “Pitangui era a porta dos sertões”, de onde homens seguiam para as minas de Goiás, escapando da lei e da cobrança de tributos.
Idealizador do projeto “Potencial Turístico na Região da Picada de Goiás”, o mestre em geografia pela PUC Minas Leonardo Silva crê que um dos fatores que contribuíram para a falta de conhecimento sobre a cidade estaria relacionado às revoltas reprimidas pela Coroa Portuguesa entre 1718 e 1720, que teriam marcado a região de forma negativa. “A Picada de Goiás é tão rica quanto a Estrada Real de Diamantina ao Rio de Janeiro”, explica Leonardo, citando o caminho mais conhecido atualmente sob o nome de Estrada Real, compreendendo trilhas oficializadas pela Coroa Portuguesa para o trânsito de ouro e diamantes de Minas Gerais a portos do estado vizinho. “Esta é uma estrada real também, por onde passou o ouro do Oeste de Minas e de Goiás. Acontece que o projeto conduzido pela Fiemg (que instituiu a outra Estrada Real) só levou em conta cidades com acervo histórico considerado, pelo fato de Diamantina e Ouro Preto serem patrimônio da humanidade”, sustenta. Segundo ele, mesmo passado o Ciclo do Ouro e com a abertura do Caminho Novo entre Mariana e a capital fluminense, a picada do Oeste manteve importância, ligando ranchos da região e consolidando a anexação do território do Triângulo Mineiro.
Enquanto o já estabelecido Instituto Estrada Real contou com milhões empregados no desenvolvimento e marketing da maior rota turística do país, que soma mais de 1.630 quilômetros em seus quatro caminhos, a Picada de Goiás não teve investimentos. “Vai ser feito um trabalho inteiro para marcar a estrada, que vai demandar recursos”, adianta Leonardo.
Duas audiências foram realizadas este ano, em Oliveira e Carmo da Mata, e em 2017 a ideia será apresentada também em outras localidades. “Dependemos de apoio, patrocínio... Conversamos com prefeitos e empresários para levar adiante”, informa o idealizador. Os quatro caminhos principais a serem marcados e sinalizados incluem a Picada de Goiás (Caminho Novo), o Caminho dos Sesmeiros, o Caminho de Pitangui e a Trilha dos Bandeirantes (Caminho Velho). A elaboração de um calendário de festas tradicionais e manifestações culturais na região já foi concluída.
Caminho esquecido
O Caminho Novo da Picada de Goiás foi aberto pela Coroa Portuguesa entre 1733 e 1736, e procurava encurtar a distância para quem vinha de São Paulo e Rio de Janeiro, até então obrigado a passar por Vila Rica, hoje Ouro Preto, numa jornada arriscada que durava mais de três meses. Os outros três caminhos alcançam ou passam por Pitangui, o mais antigo sendo a Trilha dos Bandeirantes, aberto na época da fundação do povoamento, em 1709. Caminho Velho e Caminho Novo se unem em Paracatu, no Noroeste mineiro, e seguem até Goiás. Considerando atrativos históricos, naturais e culturais, na região de Pitangui se destacam, além do casario colonial, a Igreja de São Francisco, do século XIX, a Capela de Nossa Senhora da Penha do século 17, visitação de minas de ouro em Onça do Pitangui e o percurso de trilhas no cerrado, a pé ou de bike.
Nota do pedal
Entalhando sonhos
Um museu em Divinópolis guarda histórias e obras de Geraldo Teles de Oliveira, o GTO, mestre da arte popular brasileira revelado ao mundo nos anos 60 e 70. De origem simples, escultor mineiro iniciou produção artística aos 52 anos, entalhando em madeira visões que recebia em sonhos. Um instituto criado há 15 anos preserva o legado do artista e promove ações culturais voltadas para as novas gerações. “Era uma pessoa da área rural, que só capinava e mexia com roça, nunca teve contato com nada ligado a arte. Aos 52 anos, ele sonhou com alguém falando o que tinha de fazer”, conta Alex Teles, neto de GTO, também artista plástico e diretor do museu.
DIÁRIOS DA BICICLETA
Incentivo, solidariedade e oração
Descendo rumo ao Centro-Oeste mineiro, apertando o pedal em estradas com tráfego pesado, sigo pela BR-135 saindo de Curvelo em direção a um dos cruzamentos mais importantes do estado, no trevo com a BR-040. Passo a noite na Pousada Trevão, no posto de mesmo nome. Saindo cedo na direção do distrito curvelano de Angueretá, um andarilho sorrindo no acostamento ergue os braços e incentiva: “Vai na fé, irmão”. Com o isolamento do Norte ficando para trás, não passa um dia em que caminhoneiros não buzinem, como que pontuando a cumplicidade em dividir a estrada, dando crédito ao ciclista por encarar tudo ali de baixo, sem boleia, motor ou para-choque. O meio do dia é gasto negociando uma estrada de terra larga, que corta imensas plantações de eucalipto. Em trechos com lama à qual foi adicionada pedra ardósia em cacos, produto comum na região, para preservar pneus e paciência prefiro empurrar a bike. Alcanço Papagaios exausto e uma senhora se dispõe a me servir uma refeição, mesmo encerrado o horário de almoço. Seguindo para Pitangui na manhã seguinte, numa estrada em obras, trechos de asfalto esburacado conseguem ser piores do que os de terra. Um colega de redação me acomoda na cidade histórica e me põe a par de um pouco dos mais de 300 anos do lugar. Dois dias depois, de volta ao guidão, aproveito uma parada em Conceição do Pará para um clássico da culinária mineira de estrada: pão de queijo com linguiça regado a caldo de cana. Sigo na BR-494 até Divinópolis, maior cidade do trajeto. Com uma revisão no equipamento feita em Curvelo, me informam que rodei mais de 200 quilômetros sem os parafusos do pedivela. Problema que, somado pelo atendente, é resolvido ao custo de “um aperto de mão e uma oração bem feita”.