Há sete anos, M., de BH, viaja até 300 quilômetros por dia até seu ponto de trabalho - Foto: Túlio Santos/EM/D.A Press
Visto pelo mapa ou por livros de geografia, um dos principais eixos de transporte do país, ligando as capitais de duas das maiores economias brasileiras, é sinônimo de tráfego rápido e pesado – de veículos e dinheiro – pelas pistas que se estendem por 586 quilômetros entre Belo Horizonte e São Paulo. Percebida com mais tempo e menos correria, nas pedaladas cadenciadas sobre uma bicicleta, nota-se que a Rodovia Fernão Dias, ou BR-381, abriga um outro tipo de movimento, vida mais lenta, com uma riqueza peculiar, na maior parte das vezes ignorada por quem faz do trecho apenas caminho até o destino. Atraídos pela boa estrutura e pelo grande número de pontos de apoio, andarilhos anônimos percorrem há anos os acostamentos da rodovia, muitos deles refazendo os trajetos infinitas vezes. Com um quarto da população mineira acomodada em cidades de sua área de influência, a estrada é também casa e ponto de trabalho para uma legião que leva a vida às margens do asfalto e da sociedade.
Um deles, e dos mais experientes, é Luís Cláudio de Melo, de 52 anos, mais conhecido como Polaco Carroceiro. Alcançado perto do trevo de São Gonçalo do Sapucaí, rumava para São Paulo puxando seu carrinho de madeira, espécie reduzida de carroça de tração humana. Carrega colchão, cobertas, poucos utensílios, alguma roupa. Ao descrever sua rotina, revela uma vida que lembra o mito grego de Sísifo – personagem condenado a rolar eternamente até o topo de uma montanha a mesma pedra, que, atingindo certo limite, rolava de volta, inutilizando o trabalho inicial. “Eu mesmo já fiz 12 vezes a viagem ida e volta: 12 dias saindo de São Paulo, no Jaçanã, e chegando no Centro de Beagá, na rodoviária”, revela, sem precisar exatamente o motivo da infindável viagem.
Dinheiro, consegue catando latinhas – saindo de Beagá, juntou R$ 45 até Perdões.
Nos 120 quilômetros anteriores, havia conseguido outros R$ 18. Usa o que recebe só para lugares onde não ganha marmita. Mas isso é raro, revela: “A Fernão Dias é a mãe dos trecheiros; aqui ninguém nega nada”, define Polaco. “Tem gente que só faz esse trecho por isso. Tem o Cabelo, que anda com uma foice na bicicleta, tem a Beatriz, que é meio grande e só vai de carona, se oferecendo pros caminhoneiros...”, enumera. Com a experiência de quem vive no trecho, conta que são sete ou oito os mais frequentes, os “mestres da 381”.
Rodando por Goiás, Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro e toda a Região Sul, só não andou mais no Nordeste porque não encontrou acostamento quando esteve na Bahia. “O resto que eu queria conhecer, eu conheço”.
O melhor mesmo, considera, é a BR-381. A placa do seu “veículo”, FGY **40, Polaco achou em São Paulo. “Encontrei assim, não sei a cidade, tô jogando no bicho direto”, segreda. Natural de Itararé, na divisa com o Paraná, o homem vive como nômade há 12 anos, desde que se separou e caiu na estrada. Bebia muito e brigava com a mulher, até que a deixou com a filha, hoje com uns 18 anos. Largou também emprego com carteira assinada e perdeu direito à aposentadoria. Conta ter deixado a bebida há seis anos.
Conhecendo cada metro da estrada, Polaco calculava a distância até o próximo posto, onde planejava tomar banho e fazer a barba. Com um macacão com faixas fluorescentes, presente que ganhou de trabalhadores na rodovia, refere-se à Fernão Dias como quem fala de uma cidade onde se sente em casa.
Despede-se seguindo para São Paulo, e já planejando a volta: “Lá pra novembro, este ano ainda, volto de novo pra Belo Horizonte”.
Trecho de romanceEm direção contrária, o andarilho Daniel Dias Ferreira, de 38, mineiro de Montes Claros, rumava a pé de São Paulo para a capital mineira. Num fim de tarde de chuva fina, ele conta, no acostamento, na altura de Cambuí, Sul de Minas, que já rodou de bicicleta, mas enjoou. Afirma ter viajado mais ou menos 15 vezes naquele trecho da Fernão Dias. Além de Minas e São Paulo, já passou pela Bahia, Paraná e Tocantins. “Já trabalhei muito; agora eu quero andar”, decreta. “Rola romance na estrada”, revela ele, que acabara de deixar uma “moreninha boa”, com quem contou ter passado dois dias próximo a Extrema, na divisa com o estado vizinho. Entre goles da cachaça que carrega num saco e oferece, lembra romances no Nordeste e no Triângulo Mineiro. “Melhor lugar pra mulher onde passei é Uberlândia”, define. Com a garrafa acabando e a chuva apertando, volta à pista, sonhando um dia subir novamente a BR-116, que corta o país de norte a sul. “A estrada é aventura, rapaz”.
Muita gente pensa o mesmo.
É o que se percebe próximo ao trevo que segue para Oliveira, no Centro-Oeste, em cruzamento com a BR-494, onde um posto de combustível movimentado atende caminhoneiros no horário de almoço. Do outro lado da pista, no km 618 sentido sul, duas mulheres aproveitam a sombra de eucaliptos sentadas sobre raízes que fazem de bancos. Conversam e por vezes acenam em direção a caminhões que buzinam e seguem viagem. Alguns sorriem, como se fossem velhos conhecidos. O início de tarde é movimentado para uma personagem de sandálias, short jeans e camiseta branca com detalhe transparente. Mal saía de um carro de passeio prata e um caminhão já a aguardava uns 30 metros acima. Em meia hora, atende três motoristas.
M., como prefere ser chamada a mulher de 34 anos, mora no Barreiro, em Belo Horizonte. Nos últimos sete anos, viaja de ônibus os quase 300 quilômetros ida e volta até o ponto de trabalho, à beira da 381. Alguns locais, como aquele, são conhecidos por motoristas de todo o Brasil, conta. Como prova, embalagens de preservativo se espalham no chão, por todo lado.
M. diz cobrar R$ 50 por programa e contabiliza, em dia razoável, “uns R$ 300”. “Varia muito, mas depois que a Dilma saiu, os caminhoneiros se animaram mais”, avalia, sobre a situação do país pós-impeachment. Segundo ela, na freguesia “tem de tudo: solteiro, casado”. A maioria chega em caminhões. Uns poucos, em carros pequenos. Concordando com uma foto antes de se despedir, M. responde à amiga que a chamava de louca: “Não tem problema miga, meu namorado sabe que eu faço programa”.
Diários da bicicleta - Rebeliões, celebridades e acolhida
Deixando Divinópolis, sigo para Carmo da Mata, última parada antes da aguardada BR-381. Alcanço Oliveira ainda cedo e, com quase 90 quilômetros rodados, pernoito em Perdões, num pequeno hotel de beira de estrada. Entro em Carmo da Cachoeira, nos “descaminhos fora do controle do governo”, como informa a moradora Leonor Rizzi, pesquisadora da região, que já foi chamada de deserto desnudo, “do Rio Grande pra baixo, até o Rio Sapucaí, sem lei, na lei do sertão”. Alcanço a terceira parada entrando em Campanha, que já foi sede provisória de governo separatista do Sul de Minas. “Tinha bandeira, hino, e durou alguns dias. Mas entregaram o movimento, o Exército veio e acabou”, conta o fotógrafo José Milton Junqueira. Entre os moradores ilustres, além de Vital Brazil e Padre Victor, está Maria Martins, escultora mineira integrante dos círculos surrealistas europeus, amiga de Breton e mais que amiga de Duchamp. Euclides da Cunha passou temporada na cidade e uma versão sustenta que o escritor começou Os Sertões ali. De volta ao trecho, São Gonçalo do Sapucaí e Pouso Alegre, onde colega ciclista me aguardava com boas conversas, um cardápio gourmet e – não menos importante –, uma preciosa máquina de lavar. Explorando a cidade, num banco de praça três senhores somavam quase 270 anos de amizade, descendentes de italianos e um libanês. Feis Bchara conta que aportou no país depois de 66 dias de navegação. “Fico arrepiado até hoje vendo o Cristo Redentor, com os braços abertos para aqueles que debandaram para os quatro cantos pelo furor das guerras”, se emociona. Antes de seguir para Pouso Alegre, a família foi junta até Aparecida, pagando promessa à padroeira. “Acho que Minas corresponde com o nome, não só na parte material, mas na parte espiritual também. Mina, ouro, tudo, a religiosidade que existe aqui se compara com a do Líbano”, avalia Feis. “No lendário Oriente iniciei minha caminhada, tornei-me no Ocidente peregrino da estrada”, conclui, despedindo-se com um último verso árabe. Sigo na fé pela “Mãe dos Trecheiros”, a BR-381, debaixo de chuva até Camanducaia.
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