Surto acende alerta para descontrole no combate à febre amarela

Luta contra a doença vem sendo travada no país desde 1691 e até hoje causa medo e mortes

Valquiria Lopes
Fila no Mineirão: aumento de casos da doença em 2000 levou a nova campanha de vacinação no estado - Foto: Renato Weil/EM/D.A PRESS - 4/3/01
Em 1691, ainda eram incertas as causas das febres, vômitos e diarreias que matavam milhares de pessoas no Brasil e assombravam a população. Ainda não se sabia, mas desde essa época que o país travou uma luta contra um dos mais dramáticos problemas de saúde da população brasileira e que até hoje tem causado medo e mortes: a febre amarela. A doença chegou ao país nos navios que traziam escravos da África, numa época em que as cidades portuárias tropicais não dispunham de saneamento básico.

De lá para cá, foram muitas as epidemias, até que o desenvolvimento técnico e científico eliminasse a transmissão urbana da doença, em 1942. Mas, em pleno século 21, o tipo silvestre da enfermidade volta a assombrar Minas, estado que registra números que superam os notificados em todos os surtos dos últimos 14 anos no país. Até quinta-feira, eram 486 casos suspeitos, com 84 confirmados. Desses, 97 evoluíram para a morte: 57 dos óbitos estão sendo investigados e em 40 já há resultado positivo para a doença.

Contar a história da febre amarela no Brasil é abrir um arquivo que se confunde com a história da saúde pública no país. É que tanto para se diagnosticar, tratar ou combater a doença, médicos sanitaristas muito contribuíram para a implantação das primeiras políticas de saúde. De acordo com o historiador Rodrigo Cesar Silva Guimarães, doutor em história das ciências e da saúde da Casa de Oswaldo Cruz, unidade de memória histórica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), até o fim do século 19 “não se sabia ao certo o que causava a doença, que era combatida com medidas sanitárias”.

Somente em 1881, o médico cubano Carlos Finlay apontou um pernilongo (Culex) como transmissor da febre amarela e, em 1900, conseguiu convencer a comunidade científica de que era o mosquito Aedes aegypti o transmissor da febre amarela.
Mesmo depois de diagnosticada a febre amarela, foi intenso o trabalho de combate à doença, com campanhas capitaneadas pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz.

Surtos
Ao longo da história, ainda foram muitos os surtos de febre amarela. Em Minas, região endêmica para a doença, a vacina foi incorporada ao calendário nacional de vacinação em 2000, após a ocorrência de um grande número de casos. Ainda que disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES) mostram como é baixa a adesão à vacina: o percentual médio de cobertura no estado entre 2006 e 2016 era de 49%.

Vacinação contra febre amarela em Cabeceira Grande (MG), divisa com Goiás, como parte das medidas para conter avanço da doença no estado em 2008 - Foto: Marcelo Sant'Anna/EM/D.A PRESS - 10/1/08A HISTÓRIA DA DOENÇA

Com o anúncio do surto no Leste de Minas, em 4 de janeiro deste ano, foi grande a corrida aos postos de saúde em busca das doses e cerca de 1,6 milhão de vacinas já foram distribuídas às áreas prioritárias para a doença, sendo que metade foi aplicada. Enquanto o estado corre para dar suporte aos municípios afetados, que já extrapolam o Leste e vão de norte a sul do estado, a SES já vê os casos de dengue, zika e chikungunya aumentarem e se mostrar como mais um desafio para a saúde pública, que já enfrenta tempos de crise orçamentária. Em outra frente de ação, o trabalho é para evitar a reintrodução da febre amarela urbana.

A febre amarela é uma doença infecciosa grave, causada por um arbovírus (vírus transmitidos por mosquitos) da espécie Flavivirus febricis, cujo hospedeiro são os primatas não humanos que habitam florestas e matas tropicais. Estudos genéticos demonstraram que esse vírus surgiu na África, há cerca de três mil anos, e chegou no Brasil nos navios que traziam escravos para trabalhar nas minas e na lavoura, numa época em que as cidades não dispunham de saneamento básico e estavam infestadas de mosquitos. O resultado desse encontro do vírus da febre amarela com os mosquitos urbanos trouxe trágicas consequências para a saúde da população.

 

1685 – A primeira epidemia de febre amarela no Brasil é descrita em Recife (PE), para onde o vírus teria sido levado em um barco procedente de São Tomé, na África, que fez escala em Santo Domingo, nas Antilhas, local onde a enfermidade dizimava a população. Em Recife, fez vítimas por pelo menos uma década.

1686 – A doença chega a Salvador, na Bahia, e, até meados de 1692, cerca de 25 mil pessoas adoeceram e 900 morreram.

1691 – Até então considerada uma doença contagiosa, a febre amarela foi combatida nesse ano no Recife, com a primeira campanha profilática elaborada com base na "ditadura sanitária", por meio da segregação dos doentes, purificação do ar e das casas.

1881 – O diagnóstico da doença é feito pela primeira vez pelo médico cubano Carlos Finlay, que identificou o Aedes aegypti como vetor responsável pela transmissão da febre amarela. Em seguida, uma comissão médica militar norte-americana bate o martelo sobre essa teoria, dando início às primeiras campanhas de combate à febre amarela no início do século 20, nas Américas.

1903 – O médico sanitarista e diretor-geral de saúde pública Oswaldo Cruz dá início a um plano de combate à epidemia à febre amarela no Rio de Janeiro, então capital do país.

1904 – O então presidente do Brasil Rodrigues Alves assina o plano de reforma urbana do Rio de Janeiro, que permite a primeira aplicação da Teoria do Inseto Vetor para combate à febre amarela na capital.

Ao mesmo tempo, o trabalho combateu a peste bubônica (que era transmitida pela pulga do rato) e também a varíola, que já tinha vacina desde o século 18. A campanha de vacinação obrigatória da varíola foi posta em prática em novembro de 1904. Como o Rio passava por um processo de remodelação urbana e sanitária, a campanha enfrenta resistência entre a população. Além de ser por princípios ideológicos, essa recusa ocorreu porque as pessoas não sabiam o que era a vacina e tinham medo de       seus efeitos, o que gerou a “Revolta         da Vacina”.

1908 – As campanhas de combate à febre amarela capitaneadas por Osvaldo Cruz tiveram efeito. Enquanto em 1894 foram registradas quase 5 mil mortes por febre amarela, em 1908, houve apenas quatro casos da doença. 

De 1908 a 1928 – A febre amarela permanece combatida como epidemia no Rio de Janeiro.

1923 – A Fundação Rockefeller, instituição norte-americana que em 1918 havia lançado uma campanha mundial para acabar com a febre amarela no mundo, faz um acordo para atuar no Brasil.

1928 e 1929 – A doença volta a assombrar os cariocas em uma grande epidemia de febre amarela no Brasil. Nessa época, descobre-se que outros mosquitos também transmistem a doença.

1932 – Começam os estudos para desenvolvimento da vacina e uma descoberta importante é feita por um grupo de médicos norte-americanos no interior do Espírito Santo: a existência da febre amarela silvestre e a conclusão de que havia outros hospedeiros da doença, que são os primatas não humanos.

1934 – A vacina contra a febre amarela fica pronta e em 1937 ocorre a primeira imunização em massa no país. Foi em 1934 que se conseguiu erradicar pela primeira vez o Aedes aegypti de uma cidade brasileira.

1942 – É registrado o último caso de febre amarela urbana no Brasil.

1947 – Aprovada a Campanha Continental para Erradicação do Aedes e em 1958 o Brasil e mais 10 países são declarados oficialmente livres do mosquito.

1967 – Com o afrouxamento do trabalho de vigilância epidemiológica e de controle de fronteiras, o Brasil volta a sofrer com o retorno do Aedes. Em 1969, foi criada a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) e os programas de erradicação e controle de endemias, entre eles o da febre amarela, continuam.

1973 – O Aedes é erradicado no Brasil pela segunda vez.
Mas reaparece no mesmo ano e desde então está presente no ambiente urbano, trazendo no final dos anos 1970 a ameaça da dengue.

1980 – Entre 1980 e 2000, o país continua a registrar casos e mortes por febre amarela. De 1993 a 1999, houve grandes surtos no Brasil.

2016 – Mais duas doenças passam a ser transmitidas pelo Aedes aegypti: a zika e chikungunya

 

O QUE É A DOENÇA?
Doença infecciosa febril aguda, causada pelo flavivírus, que tem dois ciclos epidemiológicos distintos de transmissão: no ambiente silvestre acomete macacos, que funcionam como hospedeiros do vírus, que é transmitido pela picada dos mosquito Haemagogus e Sabethes a outros macacos ou a seres humanos não vacinados que penetram em seu hábitat. No meio urbano, tem como vetor o Aedes aegypti. 

 

POR QUE É TÃO TEMIDA?
1) Acomete cerca de 200 mil pessoas no mundo a cada ano (OMS)
2) É uma enfermidade grave, com letalidade elevada (50%)
3) Tem alto potencial epidêmico
4) Tem alto potencial de disseminação (transmissão por vetores)
5) Alto custo econômico (hospitalizações – UTI)
6) Causa impacto econômico (turismo, comércio, relações internacionais)
7) Gera ansiedade pública elevada (em situações de surtos)

 

QUAIS OS SINTOMAS?
Febre alta, calafrios, cansaço, dor de cabeça, dor muscular, náuseas e vômitos por cerca de três dias. A forma mais grave da doença é rara e costuma aparecer após um breve período de bem-estar (até dois dias), quando podem ocorrer insuficiências hepática e renal, icterícia (olhos e pele amarelados), manifestações hemorrágicas e cansaço intenso.

 

COMO O VÍRUS AGE?
Depois de penetrar no organismo, o vírus circula pelo sangue por dois a cinco dias. Inicialmente, usa as células dos gânglios linfáticos para a replicação e depois chega a diversos órgãos, como baço, medula, fígado e rins, onde são replicados mais uma vez. Todas as células onde a replicação do vírus ocorre são destruídas. O indivíduo apresenta, de início, febre, pulso rápido, inchaço no rosto, vômito, dores musculares. Posteriormente, verifica-se a icterícia, vômitos com sangue de cor negra e até mesmo convulsões e delírios. Casos crônicos podem evoluir para a morte.

TRATAMENTO
O tratamento é apenas nos sintomas, com assistência ao paciente, que deve permanecer em repouso, com reposição de líquidos e das perdas sanguíneas, quando indicado. Nas formas graves, o paciente deve ser atendido em Unidade de Terapia Intensiva, para reduzir complicações e o risco de morte.

COMO PREVENIR?
A medida mais importante para prevenção e controle é a vacinação. O Ministério da Saúde alerta que toda a população que reside ou que se desloque para regiões silvestres e rurais deve se imunizar. Ela está disponível em todas as unidades de saúde, e deve ser administrada pelo menos 10 dias antes do deslocamento para essas áreas. É válida por 10 anos. Quem não estiver com as doses em dia precisa atualizar o cartão de vacina.

Fonte: Ministério da Saúde e Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz 

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