A preocupação com a reserva é grande, já que praticamente desapareceram também os macacos-prego, saguis-da-serra e a área detém um terço da população criticamente ameaçada de extinção do muriqui-do-norte, o maior primata das Américas, com cerca de 450 indivíduos em Caratinga. Nesta semana, um novo senso vai tentar quantificar a devastação que a enfermidade causou na natureza e saber se alguns muriquis que não têm sido vistos morreram também de febre.
Entre a população humana, sobretudo em Minas Gerais, a doença provocou corrida aos postos de saúde para a vacinação, levando pânico a algumas cidades da Zona da Mata e vales dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri, chegando agora à Grande BH. Até a sexta-feira, último boletim da Secretaria Estadual de Saúde (SES) aponta que foram notificados 1.012 casos de febre amarela, sendo que desses 57 foram descartados e outros 220 são casos confirmados, com 174 óbitos suspeitos, sendo 78 confirmados para a enfermidade. São 84 municípios com casos suspeitos, 42 confirmados. Foram distribuídas 5.735.400 doses de vacina, sendo aplicadas 3.102.757 até sexta-feira, 1.472.538 nos municípios com surto. Os macacos são reservatórios do vírus da febre amarela e não a transmitem para os homens, dependendo do mosquito Haemagogus para picar o homem. Esse homem, caso chegue a um meio urbano, se torna reservatório da febre e pode transmitir a forma humana da doença se for picado pelo Aedes aegypti (o mesmo da dengue).
VULNERABILIDADE De acordo com a SES, não há um número fechado de epizootias, que são os animais achados mortos, no caso, primatas não humanos. Há rumores de mortes de macacos em 97 municípios, 57 em investigação e 66 confirmadas para a febre amarela. No estado vizinho, o Espírito Santo, as mortes já superam 700 casos. O Ministério da Saúde registrou 736 mortes por enquanto em Minas Gerais e no Espírito Santo.
A população total do barbado, que é conhecido também como bugio ou guariba, é de cerca de 10 mil macacos em todo o Brasil e no Norte da Argentina, de acordo com o ICMBio. Mas sua extrema vulnerabilidade à febre amarela o levou praticamente à extinção na Argentina. Em 2009, um surto no Rio Grande do Sul matou nada menos do que 2 mil primatas, reduzindo drasticamente a quantidade desses animais. “Os números mineiros não são confiáveis, pois o registro das mortes só passou a ser relacionado com a febre amarela depois que os casos em humanos apareceram, entre dezembro e janeiro. Ou seja, quando o auge da mortandade já estava passando”, afirma o primatologista Sérgio Lucena, que é professor do Laboratório de Biologia de Conservação de Vertebrados da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
“A população dos barbados nas matas de Caratinga foi praticamente dizimada. Cerca de 80% deles morreu e isso nos indica que os animais sofrem mais que os homens. Se para a população humana somente 20% têm febre amarela com sintomas, entre os barbados isso fica em torno de 80% dos indivíduos”, calcula o especialista. Os barbados que sobreviveram se tornaram imunes à doença, mas muitas vezes são membros de grupos inviáveis. “Se resistiram num grupo um adulto macho e um filhote, esse grupo é desajustado e só sobreviverá se houver uma reorganização com outros ou se extinguirá”, destaca Lucena, que segue nesta semana para a reserva Feliciano Miguel Abdala para reforçar os estudos. “Os macacos são as maiores vítimas da febre amarela. Durante um surto, é a morte deles que alerta as autoridades sanitárias sobre a necessidade de campanhas de vacinação para bloquear a transmissão”, destaca Lucena. Apesar disso, rumores de matanças de primatas em locais de surto, como Novo Cruzeiro (Jequitinhonha) e Ladainha (Mucuri), chegaram e são apurados pela Polícia Militar.
Ausência dos barbados acende sinal de alerta
Com o senso nas matas da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, no Vale do Rio Doce, espera-se saber quantos muriquis foram mortos pela febre. O animal é um dos primatas mais ameaçados do planeta e sua distribuição na reserva permitiu que a população subisse de cerca de 10, em 1976, quando o proprietário Feliciano Miguel Abdala formou a área de conservação, para os atuais 450. A reportagem do Estado de Minas foi à reserva de Caratinga, onde os funcionários responsáveis pelo manejo da área de 957 hectares se mostram tensos pelo silêncio dos barbados e de outros macacos.
Na mata fechada, entre vales de grandes amplitudes, ainda se ouve com certa regularidade os guinchados parecidos com o relinchar de cavalos, que são as marcas dos muriquis em suas passagens elegantes e eretas pelos galhos – alguns até com filhotes agarrados ao lombo. Mas a ausência dos barbados preocupava. “Desde o fim do ano não ouvimos mais aquela grande quantidade de vociferações dos macacos, nem avistamos exemplares. A seca foi muito forte e pode ter matado muitos indivíduos junto com a febre amarela”, disse o guia Roberto Paulino Pereira, conhecedor de trilhas e picadas da reserva.
PISTAS Outra forma de rastrear os animais é seguindo pistas mais sutis. No meio das trilhas, Roberto era capaz de identificar pequenos galhos de árvores caídos e dizer que foram arrancados para servir de alimento para barbados há poucas horas. Frutos mordiscados também indicavam a passagem de um bando. Só Roberto encontrou quatro animais mortos, suspeitos de terem contraído a febre amarela. “Sempre estavam perto de cursos d’água e lagos. Por causa da febre, a temperatura do corpo aumenta muito e isso fazia os animais doentes beberem muita água para se aliviar”, disse.
Com 2 horas de caminhada, uma sequência longínqua de guinchares mais graves e poderosos alertou para a presença dos barbados. “Quando escutamos uma vociferação dessas é porque há dois grupos diferentes. Os animais são muito territorialistas e só fazem isso para expulsar invasores”, afirma Roberto. A aproximação dos grupos em disputa, no entanto, não foi bem-sucedida e os animais desapareceram. Só 3 horas depois, já do outro lado da reserva, é que foi possível escutar as vociferações que poderiam ser o indicativo de dois grupos em disputa por territórios. Os animais puderam ser vistos a distância e a situação mostrou a gravidade de mortes levadas pela febre. Tratava-se de um pequeno grupo de três barbados vermelhos berrando para afugentar um outro animal que entrou sozinho no território alheio. “Pode ser que o grupo inteiro do barbado invasor tenha sido morto e ele está tentando encontrar uma outra família”, pondera o guia.