Aos 7 meses, a garotinha foi diagnosticada com miocardia dilatada. Traduzindo o termo médico, a pequena moradora de Tiradentes, no Vale das Vertentes, tem seu órgão vital grande demais para sua idade e fraco. E precisa, urgentemente, de substituí-lo por um novo.
A miocardia, que no caso dela é causada por uma dilatação do ventrículo esquerdo que enfraquece o coração, foi diagnosticada durante uma consulta marcada inicialmente para tratar uma gripe. Da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da cidade vizinha de São João del-Rei, ela foi transferida para Belo Horizonte, onde passou a morar com os pais, o empresário João Bosco Barbosa, de 32 anos e a designer de interiores Bárbara Silva Santos, de 28. Um mês e meio depois, foi novamente internada na UTI e teve duas paradas cardíacas. “Charlotte ficou internada 12 dias na UTI. Após pouco mais de um mês, uma suposta virose a desidratou e fez com que o coração dela se descompensasse. Ficou 23 dias internada em estado muito grave. Os médicos disseram que só sairia de lá com vida por um milagre”, conta o pai.
A campanha tem como madrinhas as atrizes Nicete Bruno e Beth Goulart, que usaram suas redes sociais para divulgar vídeos com debates sobre a importância de autorizar a doação de órgãos dos familiares. A hashtag Somos todos Charlotte ganha a cada dia mais adeptos e tem sensibilizado famosos a também mobilizar suas redes sociais, como a blogueira Gabriela Pugliesi, os atores Chay Suede e Roberto Bomtempo e o apresentador Marcelo Tas.
“O médico não deu expectativa alguma. Disse que há uma luz no fim do túnel que se chama transplante”, conta a tia da menina, a empresária Gabriela Barbosa, de 33. Desde então, já são 50 dias esperando um coração. Um órgãos apareceu há três semanas, mas não foi compatível com a bebê. “Não desejamos de forma alguma que alguém morra para dar um coração para ela. Mas, no meio da vida há pessoas morrendo e os familiares não sabem o quanto é importante um ato de doação para gerar outra vida”, diz Gabriela.
Charlotte tem pressa. E muita pressa. Atualmente internada na UTI do Hospital de Base e entubada, a menina age como uma guerreira. Família e amigos trabalham dia a noite, seja em hospitais, em centros de transplantes, na internet, para alcançar o máximo de pessoas e conseguir um coração para a pequena.
FILA CRESCE Dados do MG Transplantes mostram que a realização desse tipo de cirurgia com órgãos ou tecidos em Minas Gerais caiu 9,5% no ano passado em relação a 2015 – foram 1.976, contra 2.185 no ano anterior. Já os dois primeiros meses deste ano mostram uma tendência de aumento. Foram feitos no estado 345 transplantes entre janeiro e fevereiro, aumento de 28,7% em relação ao mesmo período de 2016, quando houve 268 procedimentos dessa natureza. Se o número de transplantes diminui, o impacto é sentido direto na fila de espera. Desde 2015, aumentou em 9,3% a quantidade de pessoas que esperam um novo órgão ou tecido – eram 3.093 em 2015, passou para 3.143 em 2016 e, até o dia 17 do mês passado havia 3.382 pacientes.
O diretor do órgão, ligado à Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig), Omar Lopes Cançado, admite que quedas podem variar de um ano a outro, mas atribui essa constância das reduções dos transplantes a três fatores. Um deles é o aumento do número de recusas de familiares. Dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) mostram que, embora no Brasil a recusa familiar em doar órgãos dos entes queridos falecidos tenha diminuído no ano passado, ainda é considerada alta. Em 2016, 2.571 famílias não autorizaram a doação, um pouco menos que em 2015, quando 2.613 impediram o procedimento. Num período de oito anos, quase dobrou o número de familiares que preferiram resguardar os órgãos de seus entes falecidos (Veja quadro.).
FALTA DE ESTRUTURA Também contam o baixo índice de notificações de possíveis doadores para a central de transplantes e a falta de capacidade dos hospitais em fazer o diagnóstico de morte encefálica e de concluir o protocolo dela. “Isso tem a ver com estrutura básica das unidades de saúde. A questão da notificação passa pela falta de profissional ou de condições técnicas do hospital, pois os doadores precisam estar em leito de CTI (Centro de Terapia Intensiva) e, como não há muitos nas unidades, não se consegue transferi-los para esse espaço”, afirma.
Problema se agrava na pediatria
Nos transplantes pediátricos, feitos na população abaixo de 18 anos, a burocracia trava ainda mais o procedimento. Enquanto para um adulto é suficiente a autorização de um parente de até segundo grau, para crianças e adolescentes é necessário o consentimento do pai e da mãe. “Criança de interior, por exemplo, que vem para BH se tratar e acaba tendo morte encefálica, na maioria das vezes não tem os dois por perto. E isso é uma urgência, não há tempo hábil para esperar muito. São algumas horas, não dias”, explica o diretor do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado.
O médico explica que há muito menos oferta de doadores para pacientes dessa faixa etária. Além dos termos legais, crianças, principalmente as mais novinhas, dependem ainda de compatibilidade anatômica dos órgãos, que precisam ter aproximadamente o mesmo tamanho daquele que será substituído. Segundo Omar Lopes, em Minas é feito, basicamente, transplante pediátrico de rim, por falta de equipes credenciadas. No país, esse tipo de cirurgia tem sido feita em Brasília e nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo.
O diretor do MG Transplantes ressalta que, sendo adulto ou criança, o importante é a conscientização. “Mesmo em países que têm cultura de doação mais arraigada sempre há fila de espera, porque a quantidade de transplante suplanta a de doadores. O que esperamos é conseguir, cada vez mais, aumentar o número de doadores para diminuir ao mínimo a fila de espera”, diz. “As pessoas devem conversar e se conscientizar do que é a morte encefálica, pois, quando houver um caso, a decisão cabe à família. Ela sabendo da vontade é muito difícil recusar”, afirma. Em caso de morte encefálica, quando o cérebro para, os outros órgãos são mantido às custas de aparelhos, por um período de algumas horas. Normalmente, esses óbitos são causados por doenças como acidente vascular cerebral (AVC) e traumatismo craniano. Em caso de parada cardiorrespiratória, quando o coração para, apenas tecidos podem ser doados.
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