Sem dinheiro, hospitais filantrópicos recorrem a paliativos para continuarem atendendo

Objetivo é driblar o rombo e resultado é operação aquém da capacidade. Faltam recursos para ampliar vagas ou mesmo para mantê-las

Valquiria Lopes Guilherme Paranaiba
Operando no vermelho, o São Francisco tenta se equilibrar para atender 344 leitos 100% SUS, mas o crescimento esbarra na falta de recursos - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A PRESS
Nos corredores de um dos hospitais mais antigos de Belo Horizonte, a Fundação Hospitalar São Francisco de Assis, o vaivém de funcionários, pacientes, macas, cadeiras de rodas e tantos outros processos que fazem a instituição de mais de oito décadas funcionar não deixa transparecer o rombo no orçamento.

A unidade, que é reconhecida como referência no atendimento a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) de todo o estado, está no limite da operação por problemas financeiros. Do total de R$ 7,5 milhões de custeio mensal, a instituição sofre com um déficit de R$ 500 mil, que tem se acumulado progressivamente e resultado em muitas pendências.

“Priorizamos a assistência e o pagamento da folha de funcionários, mas estamos em atraso com tributos, contas de água e luz, pagamentos de fornecedores e o pior é que para manter o funcionamento precisamos contrair empréstimos bancários, que implicam pagamento de juros”, afirma o superintendente jurídico da Fundação, Roberto Otto Augusto de Lima.

A situação, que afeta o funcionamento dos 344 leitos 100% SUS da unidade e a realização de consultas, exames, cirurgias e tantos outros procedimentos, resulta, segundo o superintendente, principalmente das “pedaladas” no orçamento que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) tem dado ao longo dos últimos anos e dos atrasos do governo do estado. Roberto explica o problema na prática. “Quem nos contrata é o município e todo o recurso que chega para o hospital, seja do estado, da União ou do governo de Minas, é repassado por meio da prefeitura. A legislação estabelece que o pagamento deve ser feito em até cinco dias após o faturamento.
Mas a administração municipal tem demorado 35 dias ou mais para nos pagar, mesmo já tendo recebido os recursos”, afirma.


Segundo Roberto, por parte do governo estadual, a dívida com o São Francisco já é de R$ 4 milhões, além de outros R$ 8,7 milhões de incentivos devidos desde 2014 à instituição, que é referência em ortopedia, oncologia, hemodiálise, cirurgia cardíaca e clínica médica. Segundo diretor, se a situação do São Francisco se mantiver, há risco de fazer cortes no atendimento - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A PRESS

A dificuldade orçamentária agravada pelo atual cenário, mas que tem sua raiz em outro problema histórico – que são os baixos valores pagos pela Tabela SUS – implica ainda outro ponto negativo para o Sistema Único de Saúde. De acordo com o superintendente, a Fundação atende atualmente a 211 pacientes fixos na hemodiálise e tem espaço físico para dobrar esse atendimento. “Mas faltam recursos para a realização de obras, compra de equipamentos e contratação de equipes”, lamenta.

Ele diz que a situação se repete em outros setores. O CTI tem capacidade para aumentar 10 leitos, enquanto o setor de clínica médica pode receber mais 20 leitos. No setor de cirurgias, mais 200 procedimentos poderiam ser feitos mensalmente, o que representaria 2.400 operações anuais, uma vez que há tempo ocioso de bloco cirúrgico. “Mas, além de tudo isso implicar mais custos, muitos médicos não têm interesse pela realização dos procedimentos por causa dos valores que são pagos pela Tabela SUS”, explica.

Operando no vermelho, o superintendente afirma que se a situação do hospital se mantiver, será preciso faver cortes no atendimento. “Sofremos com a pressão para reajustes salariais, aumento de valores pagos a fornecedores e com os reajustes percebidos na compra de insumos. A situação ainda se mantém com muito gerenciamento. Mas estamos no limite”, garante Roberto Otto.

OCIOSIDADE
Na Santa Casa de Belo Horizonte, o retrato da crise financeira também salta aos olhos. A movimentação já é outra no Centro de Admissão e Diagnóstico Inicial (Cadi), ala com 29 leitos, que viviam permanentemente lotados. É que, devido à falta de dinheiro, já é comum haver dias em que o espaço fica vazio. “Estamos com falta de medicação, material médico e insumos para exames. Temos médicos nesse setor que acabam ficando parados”, afirma a enfermeira Juliana Stengler, gerente da Unidade de Cuidados Clínicos da Santa Casa.

É no Cadi que os pacientes encaminhados para a Santa Casa pela Central de Internações, que normalmente têm acesso ao SUS pelas UPAs, passam antes de ser levados ao setor específico do tratamento no hospital.

Em um mês, é comum o Cadi receber 800 internações, mas em março foram apenas 290 até o dia 28. Dos 29 leitos, apenas oito estavam ocupados na terça-feira, todos por demandas internas da oncologia, como intercorrências da quimioterapia.

Na Santa Casa são 1.085 leitos somando CTI e enfermaria, sendo que 700 estão funcionando plenamente. Dos 170 exclusivos do CTI, 15 já tiveram que ser fechados completamente. “Qual é o problema de o paciente entrar aqui e não ter remédio? Ele morre. Não pode deixar entrar sem ter remédio. A situação para nós está ficando insustentável. Temos um custo fixo alto aqui na Santa Casa. A consequência vai ser o fechamento definitivo dos leitos. E para voltar não é de uma hora pra outra, porque você tem que recontratar pessoal, treinar, já que às vezes não são as mesmas pessoas que voltam”, completa o diretor Gonçalo Barbosa.

Outra situação que preocupa a Santa Casa é a autorização aprovada pelo governo federal na sexta-feira para um reajuste de até 4,76% nos medicamentos. Com a resolução da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed), os fabricantes ficam autorizados a praticar os aumentos, que também podem elevar as contas do hospital.

Retrato da crise na Santa Casa: corredor e leitos vazios em ala que costumava ficar lotada diariamente - Foto: Jair Amaral/EM/D.A PRESS

Ministério estuda ajuste na tabela

O Ministério da Saúde informou que estuda o ajuste das formas de financiamento, incluindo a tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e que um dos compromissos da atual gestão é a qualificação da aplicação dos recursos disponíveis, com a implementação de sistemas de informação, monitoramento e controle.
Além das iniciativas próprias do governo federal, a pasta afirma que tem solicitado o engajamento das unidades hospitalares no aprimoramento de suas gestões, buscando novas parcerias e reorganizações financeiras.

Ressaltou, no entanto, que o financiamento do SUS é tripartite (União, estados e municípios), conforme determina a própria Constituição Federal, e que sua tabela não representa a única nem a principal forma de custeio dos serviços hospitalares da rede pública. De acordo com o Ministério, o principal recurso é o orçamento hospitalar via Teto Mac, enviado mensalmente pelo órgão para os fundos estaduais e municipais, a quem compete gerenciar os valores e distribuí-los às instituições públicas e contratadas pelo SUS.

Ainda de acordo com o Ministério, o Limite Financeiro de Média e Alta Complexidade (MAC) para o estado de Minas Gerais e todos os seus municípios tem crescido ano a ano e está rigorosamente em dia. Em 2016, foram repassados R$ 4,7 bilhões para o Fundo Estadual de Saúde. Este ano, entre janeiro e março, foram repassados R$ 1,2 bilhão, verbas que devem ser usadas pelas gestões locais para custeio dos atendimentos ambulatoriais e hospitalares oferecidos pelas unidades de saúde, incluindo os hospitais filantrópicos.

Ainda de acordo com a pasta, o fortalecimento das santas casas é uma das prioridades da gestão do ministro Ricardo Barros. Atualmente, existem 2,4 mil santas casas e entidades filantrópicas no país. Juntas, essas instituições respondem por quase 50% das internações no SUS. Em 2016, apenas para assistência de média e alta complexidade, o Ministério da Saúde repassou R$ 11,4 bilhões para custear os procedimentos oferecidos por essas unidades hospitalares, número 32,53% maior em relação a 2010, quando foram repassados R$ 8,6 bilhões.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o governo de Minas informou que levando-se em consideração que mais de 300 instituições fazem parte da Federassantas, as diferentes áreas técnicas da SES precisarão de, no mínimo, 30 dias para fazer o levantamento das informações solicitadas sobre débitos e atrasos em repasses solicitadas pelo Estado de Minas. Procurada, a Prefeitura de Belo Horizonte não se posicionou sobre as queixas feitas pelos filantrópicos da capital.

Paciente temem queda de qualidade

Na ponta do atendimento dos hospitais filantrópicos, o sorriso e a satisfação de pacientes suplanta os problemas financeiros, e eles dizem não ter o que reclamar dos serviços que recebem nos filantrópicos da capital. Nem por isso, a situação de crise deixa de preocupar, principalmente porque muitos dos pacientes ali atendidos não teriam condições de arcar com procedimentos particulares, diante de uma possível suspensão de serviços na saúde pública.

Paciente da Fundação Hospitalar São Francisco, onde há dois anos faz hemodiálise, o agente de portaria Paulo Roberto Melgar Henriques, de 56 anos, expõe o temor. “Deus queira que isso nunca aconteça, porque um tratamento desse que faço aqui deve ter um preço exorbitante na rede particular. Além do mais, temos todo o tipo de assistência médica, medicamentos e cuidados sempre que necessitamos”, afirma o homem, que está afastado do trabalho por causa dos problemas de saúde. O tratamento de Paulo é feito em três sessões semanais, com duração de quatro horas cada uma. Há cinco meses, ele passou a ter a companhia da mulher, que também está em tratamento na hemodiálise. A aposentada Sandra Maria Lima Henriques, de 62, também faz elogios ao trabalho da instituição e lamenta a situação de crise. “Essa é uma questão preocupante, porque dependemos desse tratamento para viver. E aqui, nunca nos faltou nada”, disse.

Recém-operado no Hospital da Baleia, o motorista aposentado Welington Gonçalves, de 34 anos, critica a falta de compromisso dos órgãos gestores no repasse dos recursos. “Dinheiro tem. Mas a corrupção é tanta que não chega para serviços tão essenciais, como a saúde. Isso prejudica demais a vida das pessoas, principalmente daquelas que dependem essencialmente do SUS”, diz.

Marido e mulher, Paulo e Sandra fazem hemodiálise no São Francisco: 'Nunca nos faltou nada', garante ela - Foto: Ramon Lisboa/EM/D.A PRESS
Enquanto isso...
...campanhas ajudam nas contas


Hospitais filantrópicos têm recebido ajuda de emendas parlamentares e da sociedade. Na Fundação Hospitalar São Francisco, por exemplo, há campanhas como a Coração de Lacre, Bingo Solidário, de Enxoval, do Cobertor, de Papel A4 e de Fraldas Geriátricas, entre outras (veja no site www.saofrancisco.org.br). O Hospital da Baleia mantém campanhas e canais de doação. Confira nos sites www.amigosdobaleia.org.br e www.hospitaldabaleia.org.br/doe.

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