Sentadas nos bancos das delegacias de mulheres, vítimas de violência doméstica e familiar tentam pôr fim a um mal que insiste em não cessar. Com marcas roxas espalhadas pelo corpo e outras que vão além da dor física, elas se vestem de coragem para estar ali. São, atualmente, uma parcela maior do que em anos anteriores, quando a legislação ainda não era tão clara em relação à violência de gênero. Mas casos de repercussão, como os ocorridos nos últimos dias, ainda revelam a fragilidade a que a mulher está exposta quando o assunto é o resultado violento do machismo. Ontem, o cantor Victor, da dupla Victor & Leo, foi indiciado pela Polícia Civil pela contravenção penal “vias de fato”, depois de ter sido denunciado por agressão, em 24 de fevereiro, à mulher Poliana Chaves, de 29 anos. Ela está grávida do segundo filho do casal. A Polícia Civil também trabalha para apurar outro caso que chamou a atenção pelo caráter de violência. Uma mulher, identificada como K.L.P, de 41, foi agredida pelo ex-namorado, no sábado, no Bairro Buritis, na Região Oeste de Belo Horizonte. A assistente de escritório levou diversos socos e chutes no rosto e ficou dois dias hospitalizada após terminar o relacionamento com o advogado e lutador de muay thai D.A.V.M.
No caso do Victor, o artista foi indiciado com base no laudo pericial das imagens das câmeras de segurança do prédio onde ele mora com Poliana, no Bairro Luxemburgo, na Região Centro-Sul, e também pelo depoimento da vítima. A contravenção penal “vias de fato” está prevista no artigo 21 do Decreto- Lei 3.688/41, conforme informou a Polícia Civil.
DEFESA Por meio de uma rede social, o sertanejo se defendeu na tarde de ontem: "Pessoal, eu venho a público para esclarecer uma coisa diante da qual surgiram e surgem incontáveis boatos. Eu fui indiciado legalmente por vias de fato, contravenção. Ou seja, eu não machuquei ninguém. O que eu pratiquei foi um ato de desespero, para conter uma pessoa que estava completamente fora de si, de pegar em uma criança de 1 ano. E pela minha filha, o que eu fiz, eu faria de novo. Então, tudo está sendo apurado devidamente", disse Victor, em vídeo. Procurado pelo site EGO, Felipe Martins Pinto, advogado de Victor, garantiu que seu cliente recebeu a notícia com tranquilidade. "Ele confia na Justiça, e na apuração do caso", afirmou o advogado.
Já a violência praticada contra a assistente de escritório K.L.P., de 41, pode ser classificada como tentativa de feminicídio, de acordo com a Polícia Civil, que instaurou ontem o inquérito para investigar o caso e deve ouvir o suspeito e testemunhas nos próximos dias. No dia da agressão, ela foi levada inconsciente para o Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, onde ficou internada durante dois dias.
A advogada da vítima, Isabel Araújo Rodrigues, contou que no sábado a mulher decidiu romper o namoro de cerca de um ano porque já vinha percebendo o comportamento agressivo e ciumento. A agressão, segundo a advogada, ocorreu quando ele foi ao apartamento dela buscar pertences pessoais. “Ele a surpreendeu na portaria do prédio com uma rasteira. Ela caiu na calçada e ele começou a agredi-la com vários socos e chutes no rosto. Os moradores contaram à PM que presenciaram o momento da agressão e que o homem “pisava na cabeça da vítima e a batia sobre o meio-fio do passeio”.
MACHISMO De acordo com a desembargadora da 1ª Câmara Criminal e superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Kárin Emmerich, casos como esses são resultado da cultura machista e patriarcal que ainda não se rompeu. “O homem vê a mulher como um objeto do qual ele tem posse e que poder fazer o que quer. Que pode bater, pode matar, por qualquer motivo. Já houve muitos avanços, claro, mas ainda estamos em fase de transição e temos muito o que avançar em relação ao respeito pelas mulheres, porque comportamentos violentos de qualquer natureza não podem ser considerados normais”, diz. A psicóloga e coordenadora da Casa Sempre Viva, Carolina Mesquita, explica que os casos de violência física são os mais comuns entre as denúncias porque são o extremo que a mulher pode suportar. “Muitas vezes, a mulher só consegue detectar que está em um relacionamento abusivo quando a violência se torna mais explícita. Mas, de fato, houve ações anteriores que estavam sendo naturalizadas pelo casal”, afirma a psicóloga.
SINAIS Ela alerta que pequenos atos cotidianos indicam o problema.“Essa violência é travestida de diversas formas, como cuidado, confiança e ciúmes. Quando, por exemplo, o homem diz que 'não é que eu não confie em você, eu não confio no outro', ou 'eu quero ficar com você o tempo todo' já indica um sentimento de posse. Ainda há quem ache normal o homem proibir a mulher de sair de roupa curta ou sozinha”, afirma. Ela pondera que o ciúme é muito romantizado pelos casais, já que tende a ser visto como ações “bonitinhas”. Mas, são nos momentos em que a mulher diz “não” que o abuso se torna mais explícito. A psicóloga explica que é o que acredita ter acontecido quando K.L.P decidiu romper a relação e D.A.V.M a espancou. “Para o homem agredir uma mulher dessa forma é porque ele tem certeza de que tem razão. Ele acredita que não será punido”, afirma a psicóloga.
O que diz a lei
Conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/2006 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em seu artigo 129, parágrafo 9º, estabelece que se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou se tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, fica determinada pena de detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos. A pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.