Jornal Estado de Minas

Um ano após lei federal, estado e município continuam sem estatísticas sobre bullying

“Eles arrebentaram meus lanches, sujaram minha cadeira, colocaram cola nos meus cadernos e esconderam minha mochila. Desde o primeiro dia de aula, fui hostilizada pelo meu cabelo cacheado.” V.A.S., hoje com 18 anos, é uma entre muitas adolescentes que cresceram convivendo com a humilhação travestida de brincadeira no ambiente de ensino. Em meio às atividades do Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência, lembrado ontem em ações de conscientização em várias escolas, depoimentos como o de V. e a falta de estatísticas atualizadas sobre o problema evidenciam que o silêncio ainda marca a ineficiência da Lei Federal 13.185/2015, de combate à prática – segundo a qual as autoridades devem produzir relatórios bimestrais com os números de casos ocorridos no setor educacional.



Enquanto permanece pouco divulgada, a prática de intimidação sistemática tem um efeito social devastador sobre as vítimas. O bullying pode provocar feridas indeléveis e uma grande dificuldade de desenvolver habilidades de relacionamento, que podem interferir até mesmo na vida adulta. A lei criada para combater o problema prevê que é dever do estabelecimento de ensino assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnóstico e combate à violência. Para isso, estados e municípios deverão produzir e publicar relatórios bimestrais das ocorrências, para que ações sejam  planejadas. Mas, passando um ano de vigência da nova legislação, nem a Secretaria de Estado de Educação nem a Secretaria de Educação de Belo Horizonte têm ainda levantamento ou dados atualizados relativos ao tema.

Um das razões para isso pode estar no fato de a lei não prever formas de punir a omissão de ocorrências dessa natureza. Porém, o especialista em direito digital Bernardo Grossi adverte: “O descumprimento da lei poderia ser classificado como improbidade administrativa. Deveria ser responsabilidade do Ministério Público investigar esse tipo de situação”, afirma. Ainda segundo ele, os relatórios são importantes para o planejamento e formulação políticas públicas de combate à intimidação sistemática, nas diversas formas que ela assume.

Questionada sobre os dados, a Secretaria de Estado de Educação informou que o Programa de Convivência Democrática nas Escolas terá um novo sistema em rede de registro de situações de violência, que permitirá a coleta de dados sobre abusos nas escolas. Ele está em fase de homologação e testes, e a previsão é de que em maio comece a funcionar. Já a Secretaria de Educação de Belo Horizonte informou que “ao longo do ano de 2016 foi constituído um grupo de trabalho para a formulação e experimentação de uma ficha específica para o tratamento de casos de bullying”. Essa ficha está sendo reavaliada a partir da identificação de dificuldades encontradas para o seu preenchimento em algumas escolas, que alegaram semelhança da tipificação de bullying com outros eventos de indisciplina no ambiente escolar.



Se ainda faltam dados nos níveis municipal e estadual, as estatísticas federais, embora do ano passado, mostram que o problema persiste e exige atenção: segundo os últimos números divulgados em 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 7,4% (194,6 mil) dos alunos do 9º ano relataram ter sofrido bullying (zombaria ou intimidação) com frequência. A aparência do corpo (para 15,6% ou 30,4 mil) e do rosto (para 10,9% ou 21,2 mil) são as motivações mais comuns. Por outro lado, cerca de 520,9 mil alunos (19,8%) disseram já ter praticado bullying. Os dados foram coletado entre estudantes que responderam  à pesquisa nos 30 dias anteriores, em 2015.

Alunos do Colégio Loyola foram "vacinados" contra o bullying (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)
‘Vacina’ contra o abuso
Apesar da falta de dados oficiais atualizados, as próprias atividades do Dia Nacional de Combate ao Bullying mostram que as instituições estão atentas ao tema. A psicóloga Isabel Santana Brochado, coordenadora do Núcleo de Educação para a Paz do Colégio Loyola, afirma que se trata de um fenômeno social caracterizado por ações preconcebidas de intimidação, pautadas em agressividade que pode se manifestar de forma verbal, física ou psicológica. “A ação transgressora é praticada de forma contínua, por um indivíduo ou por um grupo de pessoas, sobre uma vítima predeterminada, em um contexto de relação desigual de poder”, explicou. A maioria das pesquisas já realizadas em relação ao fenômeno apontam a faixa dos 10 aos 14 anos como a idade com maior índice de abusos do tipo. No Loyola, as atividades incluíram a distribuição de cartilhas explicativas e botons, e até uma “vacina” contra o bullying para os estudantes mais jovens. O tema continuará a ser tratado ao longo do ano letivo.

Já o Colégio Magnum desenvolveu a “Semana do bem contra o bullying” e, por meio de vídeos, jogos cooperativos e oficinas, tentou conscientizar os alunos sobre o impacto dessas ações nos colegas. De acordo com Carolina Chagas Fontana, Coordenadora de Formação do 4º e 5º anos do ensino fundamental da escola, os estudantes foram incentivados a promover atitudes como a inclusão e a gentileza. “O bem precisa começar dentro de nós, e cada ação sempre gera no outro um sentimento, portanto, os alunos foram convidados a entender que um gesto bom gera um sentimento bom, o que leva a um ambiente de harmonia e respeito”, pontua a coordenadora.



DESAFIO EXTRA Se nas escolas o combate aos abusos avança, em outro ambiente o desenvolvimento tecnológico acaba se tornando um vilão para as vítimas e um aliado dos praticantes do bullying. “Com ferramentas virtuais, os processos de intimidação e exposição das pessoas são multiplicadores e devastadores. Agressor, vítima, testemunha são potencializados com a falsa sensação de anonimato”, afirma a psicóloga Isabel Brochado.

O assunto é tão atual que inspirou a série que deu vida a Hannah Baker, vítima fatal da combinação de bullying, machismo e preconceito. A série televisiva 13 Reasons Why, fomenta a discussão sobre o tema. Como no caso da personagem, episódios de suicídios de adolescentes devido a situações de abuso têm se tornando cada dia mais frequentes. M.L.C.S, hoje com 17, chegou a se automutilar e mudar de escola três vezes devido ao assédio, com o intuito de tentar recomeçar sua história. O resultado não foi o esperado. “As coisas chegaram a piorar. Falavam que eu era insignificante naquele lugar e que ninguém gostava de mim. Com tudo isso, fui tendo vários problemas até chegar ao ponto de me cortar”, afirma ela, hoje cursando faculdade e tentando superar os traumas.

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