Foi nessas condições, completamente isolado, sem auxílio de médicos ou provisões, que o norte-americano David McIntyre, de 50 anos, superou outros nove competidores e conseguiu ser o último a sobreviver na Ilha de Vancouver, no Canadá, depois de 66 dias deixado sozinho para concorrer na segunda temporada do reality show Alone, do History Channel. O que muita gente não sabe é que David morou 15 anos em Belo Horizonte e parte das técnicas de sobrevivência e de bushcraft que lhe valeram a vitória num dos programas de sobrevivência mais difíceis do mundo foram aprimoradas e algumas até desenvolvidas nas matas de Minas Gerais.
Em português praticamente perfeito, ele se define um “mineiricano” e conta que usar o prêmio de US$ 500 mil para custear a faculdade dos três filhos foi um dos maiores incentivos para se manter sozinho na ilha selvagem, com apenas dez itens para sobreviver (veja a lista). “Foi isso e a minha fé”, afirma David. Quando chegou a BH, David era missionário de uma igreja no Centro, mas não se acostumou a viver na cidade grande. “Meu pai nos criou como caçadores, na Pensilvânia. Então senti muita vontade de ir para o mato aqui em BH. Em toda oportunidade, ia para a Floresta do Uaimií (em Ouro Preto) e aproveitei para levar os jovens da minha igreja para o mato e ensinar técnicas de liderança lá”, conta.
Foi nessa época que ele conheceu seu grande amigo Giuliano Toniolo, com quem fundou a escola Mestre do Mato, uma referência internacional em treinamento de sobrevivência que já preparou policiais, agentes de segurança, pilotos, atletas e entusiastas. Os dois concederam entrevista ao Estado de Minas na Praça Estado de Israel, aos pés da Serra do Curral, mas nem isso os separou por muito tempo das atividades mateiras de que tanto gostam – logo Giuliano já estava coletando goiabas selvagens e David trançando fibras de sisal com as folhas de babosa de um jardim. “Vi um vídeo no YouTube com um americano mostrando seu facão Tramontina. Só que ele pronunciava Tramontina como nós brasileiros e isso me chamou a atenção. Entrei em contato com o David e me surpreendi quando ele disse que morava em BH, a três quilômetros de mim. Hoje, somos como irmãos de mães diferentes”, considera Giuliano, que recentemente esteve com o irmão e David num acampamento de três dias em Lapinha da Serra, distrito de Santana do Riacho, a 143 quilômetros de Belo Horizonte.
Dificuldades A vida do “mineiricano” não foi fácil na ilha canadense. Nos primeiros 10 dias ele perdeu 11 quilos. Perdeu 10 dos 25 anzóis nas primeiras semanas e sua rede de pesca foi destruída por um tronco no recife onde pescava, obrigando-o a tecer outra. Chegou a levar um tombo nas rochas e quase se ensopou no mar. Mas com perseverança, encontrou fontes sustentáveis de comida, como caranguejos, água e praticamente estabeleceu uma rotina. O último episódio, sem spoilers, é emocionante, e como o show deve ser exibido a partir deste ano no Brasil ainda dá para assistir.
Uma das coisas que David considera que Minas Gerais mais contribuiu para sua vitória no reality show foi justamente a postura analítica que precisou adotar, devido à diversidade das matas do estado, maiores que as norte-americanas. “Tive de aprender a língua que cada mata daqui falava. Para, na língua dela (da mata), saber onde achar água. Na língua dela, fazer abrigo. Na língua dela, fazer fogo. Então isso eu desenvolvi muito aqui e foi muito importante quando cheguei na ilha canadense e não conhecia aquele tipo de floresta”, afirma.
Ainda que as matas temperadas da Ilha Vancouver sejam completamente diferentes das do cerrado e da mata atlântica mineiras, algumas formas de sobrevivência desenvolvidas em Minas ajudaram na competição. “As técnicas de fazer fogo na chuva aqui são as mesmas de lá. Se está chovendo, você tem de aprender a fazer fogo com a lenha molhada. Tem de entender o tipo de lenha. Por exemplo: a candeia. Se você racha a lenha dela no meio está tudo seco. Então, lá eu procurava lenhas com as mesmas características”, conta. Outra analogia que auxiliou a fazer o fogo – que aquecia, preparava os alimentos e fervia a água de beber – foi com a resina de breu -branco-do-cerrado. “Você tira essa resina e mistura com a casca torcida. A resina tem chama fraca e as fibras da casca viram brasa, com as duas juntas consigo uma chama parecida com a de uma vela. Também usei essa técnica lá, com outras árvores que tinham resina”, afirma.
As dificuldades enfrentadas aqui também ajudaram a forjar sua persistência. “A sobrevivência na mata focaliza em fogo, abrigo, água, sinalização, navegação e alimentação. Já passei dificuldade em todas essas áreas aqui em Minas Gerais”, conta David. Logo no seu primeiro acampamento, essas dificuldades que ele chama de “perrengues” já se interpuseram ao acampamento. “Na primeira vez que acampei de rede nas montanhas, perto de um riachinho, não sabia que o ar frio descia acompanhando a água e passei muito frio. Acordei 3h e não consegui mais dormir. Já passei desidratação aqui. Principalmente no cerrado. Então tive de desenvolver técnicas para achar água”, disse. Acostumado a enfrentar temperaturas abaixo de 0°C em sua terra, David aprendeu que morrer de hipotermia também era possível nas montanhas mineiras. “Se a sua roupa estiver molhada, por exemplo, você pode sim morrer de frio”.
Preocupação com a natureza
O interesse dos brasileiros nas artes do mato e em sobrevivência têm se mostrado evidente pelo grande número de programas sobre o tema na programação da TV paga e em canais da internet. Para Giuliano Toniolo, que é consultor de programas do Discovery Channel, isso pode ajudar a quebrar estigmas, mas sem um trabalho de educação ambiental pode levar a mais degradação da natureza. “Hoje em dia tem havido um interesse muito grande sobre técnicas mateiras. Esse conhecimento era restrito à roça em si. Porque as pessoas desvalorizavam isso como se fosse coisa de pobre, programa de índio”, afirma.
Já David McIntyre, lembra que, quando começou a ir para a mata, havia preconceito quanto a essa forma de vida. “Na minha igreja, quando comecei a fazer minhas aventuras no mato, uma senhora me falou assim: ‘Ô pastor Mac, por que você fica fazendo essas coisas de mendigo no mato?’”, lembra.
Esse preconceito começou a ser vencido, na opinião de Giuliano. “As técnicas que permitiram ao ser humano sobreviver na natureza hoje em dia eram tidas como algo ruim. Esse renascimento está mostrando que essas técnicas são muito mais do que um programa de índio, são formas preciosas e que precisam ser resgatadas. E são coisas sofisticadas, ao contrário do que se pensa, pois são ideais para a sobrevivência em locais específicos. Aquilo que o homem da zona rural tem é um profundo conhecimento da natureza da sua região.”, afirma
Esse interesse renovado é considerado positivo. No entanto, há um lado negativo, na opinião de Giuliano. “A falta de educação no mato é muito grande. Nesse acampamento mesmo que fizemos em Lapinha da Serra, voltamos trazendo de volta lixo que deixaram na trilha. Minha maior preocupação é as pessoas irem para o mato sem o mínimo de respeito. Se não tivermos uma postura sustentável ao longo do tempo o bushcraft e as artes do mato começarão a ser associados à degradação ambiental e acabarão se tornando marginalizadas. A última coisa que queria ver é a notícia de que mateiros provocaram incêndio ou cortaram matas ameaçadas”, afirma.
Kit mínimo
O que David McIntyre levou para sobreviver por 66 dias sozinho:
1-Faca de aço inoxidável
2-Pederneira (usada para
produzir faíscas)
3-Panela
4-280 metros de linha
de pesca e 25 anzóis
5-Serrote dobrável
6-Machado
7-Saco de dormir para 0°C
8-Cobertura de saco de dormir
9-Rede de pesca
10-Rações de emergência