Mulheres que levam o nome da mãe de Jesus falam de seus calvários e da ressurreição interior

Neste sábado, quando cristãos fazem vigília à espera da páscoa, três Marias contam como superaram dramas vividos em datas especiais

Gustavo Werneck

Tinha tudo para ser um dia feliz, desses que ficam na memória, no porta-retratos, na tela do celular e, principalmente, guardados no fundo do coração: a cerimônia de casamento, o dia das mães celebrado em família e o retorno do filho para começar o novo ano.
Mas por essas voltas que a vida dá, nada saiu como desejado e a dor da perda transformou a data especial em desencanto. Neste sábado, depois que os cristãos lembraram a morte de Jesus e esperam a páscoa, três mulheres de nome Maria contam pedaços do seu calvário particular e dos caminhos trilhados até a ressurreição interior.
Maria Eni Paes Sales Costa, que ficou viúva poucas horas antes de dizer “sim” numa capela de Jaboticatubas, na Grande BH, foi acolhida de forma integral pelos pais e irmãos. A fé infinita salvou do sofrimento a dona de casa Margarida Maria Barreto Pereira após o acidente com o filho Leonardo, que retornava a Belo Horizonte do réveillon em Búzios (RJ). E Maria Rosa Gertrudes, moradora do Bairro Braúnas, na Região da Pampulha, na capital, entendeu que a “palavra de Deus” é o antídoto para o momento mais difícil e os anos que se seguem à morte da mãe.

O vestido da noiva

"Ficava a maior parte do tempo no quarto, pensava que não havia no mundo alguém mais triste do que eu. E vinha a pergunta: Por que comigo?" (Maria Eni, que perdeu o noivo a poucas horas do casamento religioso) - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press
A Capela de Nossa Senhora do Rosário já estava quase toda enfeitada, as comidas sendo preparadas e o entra e sai de gente era grande na casa dos pais da noiva, em Jaboticatubas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mas nada neste mundo tirava o sossego da noiva de 23 anos, que se casaria no religioso às 21h com Rodrigo César Montressor, jovem que gostava de fazer trilhas de moto nas estradas da Serra do Cipó. “Muita coisa se apagou na minha memória, e, para ser sincera, nem lembro, agora, o dia e o mês em que tudo ocorreu”, diz com serenidade Maria Eni Paes Sales Costa, hoje com 49 anos e dona de um sítio e restaurante na zona rural do município.

Na casa da mãe, dona Cecília, em Jaboticatubas, Maria Eni recorda que a pior das notícias chegou por volta das 15h: “Tínhamos nos casado no civil, três dias antes, e Rodrigo foi de moto à casa dos pais, na localidade de Taboquinha, na Serra do Cipó. Mas estava demorando muito a voltar, nunca mais chegava.
Até que uma vizinha veio aqui e perguntou se eu sabia o que tinha acontecido, pois o movimento era grande na cidade”.

Ao ouvir da vizinha que Rodrigo tinha morrido num acidente de moto, a noiva pediu aos pais, de imediato, que distribuíssem as comidas da festa. “Fiquei sem chão, desesperada. Meu sonho era me casar na Capela do Rosário. A noite do casamento se transformou em velório. Rodrigo machucou tanto o rosto que o caixão precisou ser lacrado. Doía muito em mim, doía a alma, algo que só a gente entende”, afirma Maria Eni, que, passadas mais de duas décadas e com a vida refeita, não deixa de se emocionar. “O vestido de noiva foi doado à paróquia e o dinheiro da venda usado em obras sociais.”

PESSOA MELHOR Os primeiros meses não foram fáceis, o sol não tinha mais brilho, o dia era apenas escuridão. “Ficava a maior parte do tempo no quarto, pensava que não havia no mundo alguém mais triste do que eu. E vinha a pergunta: Por que comigo?”, diz Maria Eni, que herdou o nome Maria da avó paterna italiana e Eni (Enny, em alemão) da avó materna, nascida na Alemanha. Com o correr dos dias, viu que tinha dois caminhos: ficar chorando ou virar a página. E foi então, com o nascimento do sobrinho e afilhado Eduardo, um mês depois da tragédia, que viu o mundo voltar a sorrir. “Eu me apeguei demais ao Eduardo. Meus irmãos Patrícia, Giza e Viviane foram fundamentais desde então”, diz a fazendeira.

Devota de Nossa Senhora da Piedade e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Maria Eni virou a página e está certa de que se tornou uma pessoa melhor.
De início, conseguiu a anulação do casamento civil e voltou a trabalhar. Mais tarde, casou-se novamente e se separou; teve o filho Bernardo, de 11 anos, de um relacionamento; e em maio de 2016 se casou com tudo o que tinha direito com Roberto. “Ele é minha luz, um homem caridoso, que trabalha com a terra. Acho que vamos ficar juntos e velhinhos. É para o resto da vida. Família é tudo na vida”, afirma, abraçada à mãe Cecília e ao filho único, Bernardo.

Respingos de afeto

"A blusa da minha mãe está pendurada no meu armário há 26 anos. Nunca lavei. Tem as marcas do guardado" ( Maria Rosa Gertrudes, que perdeu a mãe no dia das mães) - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press
Na porta da cozinha, Maria Rosa Gertrudes, de 62 anos, segura, com carinho, a única lembrança física que guardou da mãe, além da carteira de identidade e da certidão de nascimento. Com os olhos brilhando, ela mostra a blusa de linho branco com bolas verdes e aponta um detalhe importante na costura: “Veja a bainha em pé de pinto que ela fez.” Logo depois, cobrindo parte do rosto com a peça, Maria Rosa dá um sorriso discreto e diz sentir no tecido o cheirinho de dona Catarina. “A blusa está pendurada no meu armário há 26 anos. Nunca lavei. Tem as marcas do guardado”, observa a dona de casa moradora do Bairro Braúnas, na Região da Pampulha, em Belo Horizonte.

Casada com o autônomo José – “aqui em casa somos Maria e José” –, a mãe de quatro filhos e avó cinco vezes estende a blusa sobre a mesa da varanda e faz questão de mostrar outro detalhe.
“Essas manchinhas amarelas são da laranja que mamãe chupou quando estávamos no carro a caminho do hospital. Ela fez uma cirurgia de coração, pôs ponte safena, teve hemorragia...” O silêncio do fim da frase é cortado pelas brincadeiras da cadelinha Morena e da gata Juju, que se enroscam, como velhas amigas no chão da varanda e distraem a atenção da dona da casa. A mãe Catarina, natural de Tocantins, na Zona da Mata mineira, morreu em 10 de maio de 1991, um domingo. Era dia das mães.

Maria Rosa recorda que a mãe tinha olhos verdes, o mesmo tom das bolas da blusa que tantas recordações trazem. “Foi uma perda horrível. Para mim, acabou o dia das mães. Mesmo sendo uma data móvel, pois é comemorado no segundo domingo de maio, acabou a graça. Na casa, nunca mais houve almoço comemorativo, muito menos presente para homenagear Maria Rosa. “Quando algum filho inventava de comprar algo para mim, eu já falava que de jeito nenhum. Ficou tudo muito triste”, revela. Como resposta, Maria Rosa começou a falar para os filhos que todo dia é dia as mães. E não se tocou mais no assunto.

LIÇÕES Até hoje Maria Rosa se enternece ao falar do jeito doce da mãe e sabe ser impossível esquecer ou superar tal perda. Mas, evangélica, encontrou forças na palavra de Deus, “pois sozinho a gente não dá conta, não” e na lição insuperável de que “amor de mãe é maravilhoso, eterno”. Em resumo, “fica registrado para sempre”.

No chão da varanda, Juju e Morena continuam a fazer a festa e a gatinha se destaca mais, exibindo o focinho com uma mancha escura. Num minuto, está no colo de Maria Rosa e em seguida dá um salto, se alojando no meio dos vasos de plantas. Maria Rosa dobra a blusa da mãe com o cuidado costumeiro e confessa que nunca mais chorou. “Mas quando morre a mãe de alguém, não tem como não ficar comovida”, diz baixinho, quase em segredo, com o tom de voz que transmite uma grande saudade.

Noite de vigília

"Fiquei ali sozinha no hospital, até as 8h, pedindo a Deus que salvasse a alma do meu filho. Em um momento, ele chegou a estremecer todo" (Margarida Maria, que perdeu o filho num acidente no início de 2000) - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press
A virada do ano, de 1999 para 2000, criou um clima de festa sem igual e também de expectativa: era uma mudança de tempo muito especial, embora acompanhada do temor de que os computadores do mundo inteiro entrassem em pane com o tal “bug do milênio”. Nada demais aconteceu nos aeroportos, nas empresas ou nos hospitais e a vida seguiu normalmente. Para celebrar a data, Leonardo Barreto Pereira, de 23 anos, viajou para Búzios (RJ) com dois amigos, um deles dirigindo o carro. Na viagem de volta, em 4 de janeiro, perto de Barbacena e sob chuva forte, o veículo bateu de frente com um ônibus. Dois morreram no local e Leonardo foi conduzido ao Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte. Tinha morte cerebral.

Moradora do Bairro Anchieta, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, e mãe de seis filhos, a dona de casa Margarida Maria Barreto Pereira aguardava com alegria a chegada de Leonardo e a formatura do outro filho, André, que concluía o curso de medicina. “Eu estava exatamente entregando os convites, quando recebi a notícia, pelo telefone, do acidente. “Cada um tem sua história. Na mesma semana, participamos da missa de formatura do André e da de sétimo dia de Leonardo”, recorda-se.

Para suportar a perda do quinto filho, Margarida Maria, viúva, hoje com 74 anos, se amparou na fé e nas orações. “Tenho comigo a força de Deus”, resume. Tão logo soube do ocorrido, ela foi para o hospital e passou a noite, em vigília, rezando ao lado do filho, que estava em coma. “Fiquei ali sozinha, até as 8h, pedindo a Deus que salvasse a alma do meu filho. Em um momento, ele chegou a estremecer todo”, conta a dona de casa com uma tranquilidade que impressiona e comove ao mesmo tempo. “Meu marido sofreu demais e dizia que eu tinha muita calma. Mas tenho é fé demais”, afirma.

BÊNÇÃOS Na varanda do apartamento, olhando as bicicletas dos 12 netos – “eles são bênçãos de Deus” – Margarida Maria diz que desconhecia ter tanta força. Já na sala, ela mostra, num canto, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, um presente recebido na primeira comunhão e testemunha de muitas histórias em mais de seis décadas. “Participo de grupo de orações, vou todos os dias à igreja, enfim, estou sempre presente nas atividades da Paróquia de São Mateus”, observa Margarida Maria, segurando um porta-retratos com a foto de Leonardo, na qual ele carrega a sobrinha e afilhada Beatriz, que tem agora 17 anos.

Uma das grandes emoções nesses últimos anos foi a visita à Serra da Piedade, em Caeté, na Grande BH, onde está a imagem da padroeira de Minas. “Subi a serra debaixo de uma chuva danada. Encharquei. Mas quando estava diante da imagem de Nossa Senhora da Piedade, fiquei encantada. E me vi no lugar dela. Comecei, então, a pensar em quantas mulheres sofreram com a perda de um filho.”.