Joaquim Silvério dos Reis: o primeiro delator a mudar a história

Instituto da delação premiada, mais vivo do que nunca na vida republicana, está presente nas próprias origens da formação do país, quando Silvério dos Reis entregou ex-aliados da Inconfidência Mineira em troca do perdão de dívidas com a Coroa, contam historiadores

Gustavo Werneck
- Foto: Quinho
Um personagem odiado na história do Brasil emerge das profundezas neste 21 de abril rodeado de delações premiadas, denúncias de pagamento de propinas e de outras ações corruptas de políticos, empresários e executivos que vieram à tona com a Operação Lava-Jato. Trata-se do português Joaquim Silvério dos Reis Montenegro Leiria Grutes (1756-1818), conhecido nos livros como Silvério dos Reis e sinônimo de traição ao movimento ocorrido em 1788-1789, a Inconfidência ou Conjuração Mineira, liderado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746 a 1792).

“Ao entregar os inconfidentes à Coroa Portuguesa, com a qual estava em débito, Silvério dos Reis teve sua dívida perdoada. Fez uma denúncia por escrito e uma delação premiada, por que teve benefícios e não pagou suas dívidas à Fazenda Real. Assim, é um dos casos mais célebres de delação premiada no Brasil, embora não se possa dizer que foi o primeiro”, diz o professor de história Luiz Carlos Villalta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao longo dos séculos, a reação da opinião pública a delatores e delatados variou, mas a prática da delação de antigos aliados em troca de benefícios, inaugurada no Brasil Colônia, avançou pela história e está mais viva do que nunca no período republicano.

Aquele que tornou conhecida a delação premiada era comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar de Borda do Campo, em Minas, fazendeiro, minerador e contratador de impostos (comprara em leilão o direito de arrecadar certos tributos). Silvério dos Reis integrava inicialmente o grupo que se insurgiu contra a cobrança do “quinto do ouro”, taxa em teoria de até 20% sobre a produção. Vale lembrar que, se os mineradores não pagassem ao governo 100 arrobas de ouro anuais, a Coroa Portuguesa poderia decretar a derrama, obrigando as câmaras municipais a fazer o povo pagar o valor necessário para chegar àquele total.

“Silvério dos Reis sabia de todos os passos do movimento. Numa comparação com a atualidade, seria como se o ministro da Fazenda no governo Lula, Antonio Palocci, que está preso, ou Paulo Preto, ex-assessor do ex-governador de São Paulo (SP) José Serra, soltassem a língua e contassem tudo o que sabem”, ressalta o professor e autor do livro Brasil e a Crise no Antigo Regime Português (1788-1822).
Guardadas as devidas proporções de tempo, espaço e valores envolvidos, Villalta afirma que o traidor dos conjurados mineiros e os executivos de empreiteiras como a Odebrecht têm em comum e tiveram como alvo “a apropriação privada do que é público”.

“Com a delação, o português não pagou as dívidas à Coroa. Ele era um contratador de impostos endividado e usou isso a seu favor”, observa. “Já os donos e diretores de grandes empreiteiras e antigos executivos da Petrobras, que é de capital misto, estão envolvidos num sistema em que a coisa pública é apropriada para fins privados. Em ambas as situações, no século 18 e 21, o interesse é o ganho ilícito.”

PRISÃO Para entender melhor a história da traição na Inconfidência Mineira, é preciso fazer um exercício de volta no tempo. Tiradentes estava no Rio de Janeiro quando a tentativa de levante foi esmagada pela Coroa Portuguesa. Sabendo de todos os meandros da questão, Silvério dos Reis foi ao encontro dele, a mando do vice-rei. Sem desconfiar de nada, embora espionado, o alferes decide voltar a Minas e antes se esconde na casa de um amigo na Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, no Centro da capital fluminense.

Em 10 de maio de 1789, o alferes foi preso com um bacamarte na mão, explica o professor Villalta. Em três interrogatórios, negou tudo e, no quarto, em 18 de janeiro de 1790, confessou, assumindo sozinho toda a responsabilidade e eximindo os demais conspiradores de qualquer culpa.

E que fim levou Silvério dos Reis? O traidor dos inconfidentes terminou seus dias no Maranhão, sofrendo hostilidades dos moradores da terra. Já o outro denunciante, Basílio de Brito Malheiros, falecido em 1806, registrou em seu testamento que todo “o povo de Minas, todo o Brasil, em verdade, alimenta um ódio implacável contra si depois da projetada inconfidência de Minas”.

CORRUPÇÃO Perto de lançar um livro sobre a situação no período colonial – A corrupção do corpo místico – Práticas ilícitas na governação do Brasil –, a professora de história da UFMG Adriana Romeiro destaca que as irregularidades praticadas nos séculos 17 e 18 e as formas de atuação comparadas com as de hoje são quase idênticas. “Havia corrupção, sim, suborno de autoridades, como juízes, e pagamento de propinas, que se conhecia muito bem”, conta. Um bom exemplo dessa situação de indignação, acrescenta, está nas Cartas Chilenas, poemas escritos por Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), no qual ele faz uma denúncia do governador da Capitania de Minas (de 1783 a 1788), Luís da Cunha Menezes, a quem chama de “Fanfarrão Minésio”.

Adriana Romeiro diz que muitas denúncias eram encaminhadas por escrito, pelos vassalos, à Câmara Municipal, ao governador e até ao rei de Portugal. “Em alguns casos, o rei chamava os responsáveis; em outros, as denúncias eram silenciadas. A Coroa era muito tolerante e leniente em relação aos abusos, embora rigorosa quanto ao desvio de dinheiro público, no caso, o ouro”, explica.

A corrupção existe no Brasil desde que Pedro Álvares Cabral chegou aqui, em 1500, resume a professora.
E não foi diferente em Minas, no século 18. “Os governadores que vinham de Portugal voltavam ricos para a Europa. O objetivo, como disse Tiradentes, era espoliar: ‘Os portugueses são a esponja a sugar a Terra’. E muitos deles estiveram envolvidos em negociações clandestinas.”

"Hoje, Tiradentes ainda se rebelaria"


Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, tinha seus ideais de liberdade, de ver independentes as capitanias de Minas, do Rio de Janeiro e São Paulo – na época, os inconfidentes não tinham noção exata do que era o Brasil e a palavra brasileiro quase não era usada – e de viver num país republicano. “Mas é preciso entender que Tiradentes era um homem do seu tempo. E que não era nenhum santo”, diz o professor de história Luiz Carlos Villalta, da UFMG. “Era dono de escravos, tinha uma vida sexual ativa, enfim, vivia como alguém da sua época. E havia inconfidentes metidos em contrabando de ouro e pedras preciosas”, acrescenta.

Afirmando que a corrupção grassava no período colonial e que a corte de dom João VI foi bastante corrupta, Villalta ressalta que “a diferença entre o Palácio de São Cristóvão, sede da corte no Rio de Janeiro, e o Palácio do Planalto, em Brasília (DF), é só uma questão de escala”. Pesquisador dos fatos históricos e atento observador dos novos acontecimentos, o professor vê dois traços de união entre os períodos colonial e republicano: a continuidade da corrupção e as denúncias contra ela.

Se saísse das páginas dos livros de história para conhecer um pouco do Brasil de hoje, Tiradentes certamente denunciaria a espoliação do capital nacional, acredita Villalta, que considera o mártir da Inconfidência um herói. “Ele se rebelaria contra tudo o que fosse a favor da exploração, pois era muito crítico nesse aspecto.

Na época da colonização portuguesa em Minas, Tiradentes falava em alto e bom som que ‘Minas era rica e ficava pobre por causa do arrocho tributário, do monopólio comercial metropolitano e dos roubos dos governadores e seus protegidos’”.

Ouro e revolta nas raízes da conjuração


Desde o século 16, tanto em Portugal quanto no Brasil, os súditos acreditavam que o poder do rei tinha origem no consentimento deles. Assim, se o monarca se tornasse um tirano – desrespeitando leis e privilégios de grupos e instituições, além de afrontar a religião católica –, poderia ser deposto. Os jesuítas estiveram entre os grandes divulgadores dessa ideia e a disseminaram em suas escolas.

No século 18, novos ventos sopram sobre o Ocidente, trazendo a filosofia de pensadores franceses que criticam o poder absoluto dos reis, a administração colonial, o monopólio comercial, a intolerância religiosa e o sistema de trabalho escravo. A Inconfidência Mineira floresce no ambiente de efervescência intelectual e política, como ocorre na Europa e Américas, em especial, com a independência das 13 colônias que deram origem aos Estados Unidos (em 1776).

As novidades chegavam a Minas pelos livros, jornais, manuscritos e relatos orais de viajantes. Imbuído desse espírito, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, denuncia que altos tributos e monopólio comercial transformam Minas, uma capitania rica, em lugar de pobreza. Em 1788, o Visconde de Barbacena chega a Minas com ordem para decretar a derrama. A situação gera descontentamento na capitania, em especial entre as pessoas ligadas a grupos privilegiados – contratadores de impostos, clérigos, militares, contrabandistas etc. Um grupo começa, então, a articular uma conspiração contra o governo, a chamada Inconfidência ou Conjuração Mineira.

Mas ela é sufocada após a ação de um delator: Joaquim Silvério dos Reis. O movimento é abortado em 1789 e Tiradentes, enforcado três anos depois.

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