“Sua atenção é requerida ao documento anexo, datado de outubro de 1944, sobre o assunto ‘Trabalho geoastronômico durante o eclipse solar em 9 de julho de 1945’, e carta deste quartel-general datada de 15 de janeiro de 1945, com o tema ‘Navegação de Mísseis Guiados de Longa Distância’”, anuncia o documento.
Prossegue o ofício: “Tendo em vista o presente interesse militar em uma informação geográfica mundial do ponto de vista do uso de mísseis guiados, é sugerido que um projeto em parceria com a Engenharia de Força Aérea seja estabelecido para investigar as possibilidades de um trabalho geoastronômico intercontinental durante os eclipses solares, e para obter tantos dados quanto possíveis durante o eclipse solar de 20 de maio de 1947”. Para o professor UFRJ, a correspondência revela um fato importante: “Desde antes da ocorrência do eclipse total do Sol de 1947, visível no Brasil, o Exército dos EUA já vislumbrava usar os dados de uma observação específica para o aperfeiçoamento de mísseis intercontinentais”.
Outra comprovação nesse sentido vem de ofício datado de 15 de abril de 1947, direcionado pelo quartel-general das Forças Aéreas do Exército Americano a um oficial do “Comando de Material Aéreo”, tendo como assunto “Trabalho geoastronômico durante o eclipse solar”. Nele, fica evidente o interesse militar nos estudos de Bocaiuva: “É desejado que você se engaje como representante da Força Aérea em um projeto conjunto com a equipe de engenheiros, para investigar as possibilidades de um trabalho geoastronômico intercontinental durante os eclipses solares e para obter tantas informações quanto possível durante o eclipse solar de 20 de maio de 1947”.
Em outro ofício ao seu comando em Washington, de 18 de julho de 1947, a administração da Força Aérea faz feita referência à sua participação nos estudos sobre a “medição das distâncias das trajetórias continentais” em eclipse previsto para 1948, citando a importância desses para o “projeto de mísseis guiados”. “Os documentos demonstram que os usos que os governos dos EUA podiam dar à ciência estavam estritamente ligados a seus interesses militares. Isso não quer dizer que a ciência seja ‘ruim’, mas sim que os usos que podemos dar ao conhecimento da natureza são históricos e variam de acordo com as circunstâncias em que os envolvidos estão inseridos”, avalia.
Novos jogos de guerra
O professor salienta que “a ideia principal dos EUA naquele momento era reformular a estratégia de guerra, em que a necessidade de estar no território inimigo podia ser revista”.
O especialista faz uma comparação entre a estratégias americana na segunda metade dos anos 1940 e a conjuntura atual. “O que está ocorrendo hoje entre a Coreia do Norte e os EUA toca exatamente essa questão. Os Estados Unidos têm tecnologia para bombardear qualquer região do mundo com mísseis intercontinentais. Não se sabe se a Coreia do Norte detém a tecnologia para fazer o mesmo contra os EUA. Então, o país asiático diz que detém, sim, essa tecnologia, ao mesmo tempo em que ameaça aliados dos EUA geograficamente próximos, como o Japão, a Coreia do Sul, que pode atingir com seus mísseis sem problemas”, comenta.
Segredos e armas
A força-tarefa norte-americana que desembarcou em Bocaiuva contava com militares de alta patente das Forças Armadas, projetos de experimentos secretos e cientistas que tinham no currículo o desenvolvimento de armas de destruição em massa. “É evidente que expedição da National Geographic Society (NGS) e do National Bureau of Standards (NBS) para a observação daquele eclipse foi bem diferente não só das anteriores, mas também das organizadas por observatórios e outras instituições de pesquisa na mesma ocasião”, disse Tavares, em artigo.
Ele ressalta ainda que os norte-americanos tentavam sair na frente dos finlandeses, que na década de 1940 faziam pesquisas sobre as medições de distâncias intercontinentais. O plano deu certo.“A sondagem foi um sucesso e os cientistas dos EUA se aproximaram dos colegas finlandeses. Contudo, antes de estes publicarem seus resultados, os americanos organizaram uma expedição com sete bases astronômicas para a realização da mesma observação durante o eclipse anular do Sol que se seguiu, em 9 de maio 1948, visível no Sudeste Asiático”, relata o pesquisador.
O dia em que o sol apagou
De repente, uma grande sombra engoliu totalmente a luz do sol. Galinhas correram para os poleiros. Parecia que já estava anoitecendo, embora os relógios marcassem 9h34 da manhã de 20 de maio de 1947. Tanto quanto a invasão da cidade por estrangeiros e sua parafernália científico-militar, o eclipse total do Sol de 70 anos atrás ficou guardado nas recordações de antigos moradores de Bocaiuva. Enquanto uns se fascinavam, outros se dividiam entre o desespero ante o que acreditavam ser o fim dos tempos e a desconfiança em relação àquela gente de fala embolada, sob cujas ordens pouco tempo antes haviam sido arrasadas por bombas atômicas as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
“Foi impressionante. Eu me lembro das pessoas mais velhas rezando sem parar.
Naquela ocasião, afirma, Bocaiuva não contava nem sequer com água encanada ou rede de esgoto nas ruas de terra. A energia elétrica, gerada por motor a diesel, era fornecida pela prefeitura somente das 18h às 20h. Na cidade havia apenas duas geladeiras, à base de querosene. A “frota” de três Ford Bigode, ano 1930, pertencia a um médico, um fazendeiro e um rico comerciante. Os principais meios de transporte eram carroça e carro de boi. Os americanos chegaram a bordo de jipes e caminhões possantes.
A técnica de enfermagem aposentada Julia Nery Santana, de 82, revela que, por ocasião dos estudos do eclipse total do sol, como outros conterrâneos, viu pela primeira vez na vida “um avião de pertinho”, no campo de pouso construído pelos americanos.
O poeta e compositor Téo Azevedo, de 74, morava no distrito de Alto Belo distrito na ocasião. “Na hora do eclipse, quando viram escurecer, várias mulheres começaram a rezar e ficaram chorando, pensando que o mundo iria acabar”, descreve Téo Azevedo. O mundo não acabou. Após o eclipse, a vida dos moradores de Bocaiuva voltou ao normal, mas com uma diferença: uma grande história para contar. E não muito mais.
Enquanto isso...
…Chicletes chegam com os estrangeiros
O psicólogo Roberto Ribeiro de Andrade, de 75, conta que, além dos aviões, jipes e equipamentos, os americanos levaram outras novidades para as crianças de Bocaiuva 70 anos atrás. Uma delas foi goma de mascar, o popular “chicletes”, até então desconhecido das bocas da meninada. Na mesma ocasião, os bocaiuvenses conheceram chocolate em barra e balões de ar (“bexigas”) trazidos pelos visitantes estrangeiros, conta o morador, ele mesmo com uma história de família ligada ao eclipse: seu pai, Lourenço Bispo de Andrade, era construtor e fez o “Marco do Eclipse”, em concreto, na comunidade rural de Extrema na época das observações no local.
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