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Estado de Minas

Após receber missão inovadora há 70 anos, Bocaiuva retrocede e convive com miséria

Cidade mineira que deu um salto ao futuro com expedição americana em 1947 voltou no tempo e hoje tem comunidades vivendo à margem de avanços tecnológicos, sem ao menos água tratada para beber


postado em 16/05/2017 06:00 / atualizado em 16/05/2017 09:43

Maria Elienália, mãe de três filhos, mostra latrina usada pela família: fossa, 'banho de balde' e racionamento(foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A PRESS)
Maria Elienália, mãe de três filhos, mostra latrina usada pela família: fossa, 'banho de balde' e racionamento (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A PRESS)
Bocaiuva – Quando desembarcaram em uma remota cidade do Norte mineiro, sete décadas atrás, com o objetivo oficial de fazer observações científicas sobre o eclipse total do Sol de 1947 e com a missão secreta de aperfeiçoar cálculos para desenvolver mísseis intercontinentais teleguiados, cientistas e militares norte-americanos não poderiam imaginar que Bocaiuva se transformaria em uma espécie de portal para viagens no tempo.

Há 70 anos, o município dava um salto para o futuro: do dia para a noite, suas empoeiradas ruas de terra recebiam divisões inteiras a bordo de jipes e caminhões, carregando toneladas de aparelhos de última geração, incluindo novidades como gerador de luz elétrica e purificadores de água. Agora, em 2017, voltar à cidade equivale a retroceder ao passado e encontrar comunidades inteiras vivendo como há décadas atrás, muitas não dispondo sequer da “inovação” levada pelos americanos em meados dos anos 1940: água potável para beber. É o que revela o Estado de Minas, na segunda reportagem da série “À sombra do eclipse”.


Palco de estudos que ajudaram a comprovar da Teoria Geral da Relatividade, de Albert Einstein, e de cálculos que começariam a revolucionar a tecnologia dos mísseis balísticos disparados remotamente sobre alvos específicos – como revela pesquisa do professor Heráclio Tavares, da Universidade Federal do Rio de Janeiro  (UFRJ) –, Bocaiuva se tornou uma espécie de cidade dos paradoxos. Terra do sociólogo Heberth de Souza (1935-1997), conhecido pela campanha contra a fome que lhe valeu indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 1994, a cidade tão importante para a ciência mundial ainda tem muita gente vivendo no limiar da miséria.

É uma realidade fácil de perceber em locais como o povoado de Sentinela, distante 24 quilômetros da área urbana, que tem pouco mais de 100 casas e em torno de 500 habitantes. Lá, o único vestígio de tecnologia são casas com TV. Mas, nas moradias onde o mundo chega via satélite pela antena parabólica, falta filtro para a água, captada em poço tubular; falta esgoto; falta banheiro; falta dinheiro para a luz. E por pouco, muito pouco, às vezes não falta comida.

Realidade que faz parte do dia a dia da moradora Geralda Lucimara Souza Leite, de 52 anos, viúva, mãe de 10 filhos, dos quais cuida de seis. “A vida aqui é muito fracassada. Falta tudo. A gente só tem para comer arroz e feijão”, diz ela. Carne é artigo de luxo, visto quando muito uma vez no mês. “A carne ‘tá muito cara. A gente não tem condição de comprar”, conta ela, enquanto relata a rotina de quem tem de se virar com a pensão deixada pelo falecido marido – deveria ser de um salário mínimo, mas, por causa de um empréstimo consignado, acaba restrita à metade do valor.

No povoado de Sentinela, antenas são o único vestígio de tecnologia e mairia das casas é feita de adobe(foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A PRESS)
No povoado de Sentinela, antenas são o único vestígio de tecnologia e mairia das casas é feita de adobe (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A PRESS)

Como o que recebe é pouco, Geralda já não consegue pagar pelo fornecimento de energia. “Se eu pagar a conta de luz, fico sem comer. O dinheiro não dá para as duas coisas”, constata, enquanto mostra o espaço apertado numa casa antiga, de paredes de adobe, cedida por outro morador de Sentinela. O empréstimo consignado foi feito há três anos, na tentativa de concretizar o sonho da casa própria. Mal deu para levantar as paredes. Hoje, ela ainda não tem a moradia própria e as parcelas do empréstimo continuam sendo descontadas no valor da pensão.

A pouca comida é preparada em um fogão a lenha do lado de fora da casa. Como em outras casas da localidade, falta filtro para a água. Numa situação comum à maioria das moradias, não existe banheiro com chuveiro. Banho é “de balde”. Uma fossa faz as vezes de vaso sanitário, no modelos das antigas “latrinas”, mesma condição de 70 anos atrás, quando os americanos chegaram e pareciam trazer o futuro. O problema é que nada ficou de herança.

Disso bem sabe Maria Elienália Cruz, de 57, mãe de três filhos, dos quais dois saíram de casa para trabalhar na Região Metropolitana de BH. “A gente sente vontade de fazer uma comidinha melhor, mas não dá”, disse ela, que recebe pensão de um salário mínimo, enquanto remexe as panelas sobre o fogão a lenha. Nelas há arroz, feijão e macarrão.

Da mesma forma, a família se acostumou à falta de vaso sanitário e de chuveiro, recorrendo à fossa e ao “banho de balde”. A maior reclamação é com o sistema de abastecimento de água, que enfrenta uma espécie de racionamento permanente. “Água só chega uma hora por dia, das 6h30 às 7h30. Aqui parou no tempo. A nossa dificuldade é muita”, lamentou.

Jacira Maria Leite, de 44, mãe de sete filhos, se resigna com a dureza do dia a dia. Mas acha que o lugar deveria ter, pelo menos, um dentista permanente. “Agradeço a Deus pelo que tenho. A gente vai vivendo, com Deus nos abençoando”, disse a mulher.

Ainda em Sentinela, o casal José Faustino dos Santos, de 70, e Maria Elisa dos Santos, de 55, conta que já passou por muitos obstáculos, por causa da pobreza extrema. Há algum tempo, a velha moradia do casal, de paredes de adobe, desabou. José Faustino relata que durante cinco anos a família teve que ocupar uma habitação de um único cômodo, improvisada em uma antiga “casa de farinha”. Batalharam e, com a venda de mudas de árvores frutíferas para a prefeitura e a ajuda de outras pessoas, iniciaram a construção de uma nova casa.

Tiveram de se mudar para ela ainda inacabada, com cinco filhos e um neto. Continuam vivendo em condições precárias, pois os cômodos, cobertos com telha de amianto, ainda não têm portas. E a família não dispõe sequer de fossa que funcione como banheiro. Na hora da necessidade, o “mato” é onde têm de se socorrer.

 

Memórias do eclipse

Desde o ontem, o Estado de Minas publica a série “À sombra do eclipse”, que descreve como a cidade de Bocaiuva foi invadida por uma missão de cientistas, militares e jornalistas, financiada pelo governo norte-americano, em 1947. O objetivo declarado era fazer observações científicas, mas, na verdade, uma das principais metas do grupo foi desenvolver cálculos que direcionariam a tecnologia dos mísseis balísticos intercontinentais, como revelou a primeira reportagem, na edição de ontem, com base em documentos até então inéditos revelados pelo pesquisador Heráclio Tavares, da UFRJ.


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