Embora estatísticas da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) mostrem estabilidade nos últimos dois anos no estado, a capital enfrenta pico desse tipo de ocorrência nos últimos 30 dias, de acordo com a Polícia Civil. Em meio ao avanço, especialistas advertem: a questão é complexa e não há causa específica. Doença, cultura do machismo e naturalização de algo grave estão entre as chagas de uma sociedade que ainda tem muito a debater sobre o problema.
Em todo o estado, foram 3.926 casos de estupro no ano passado, ligeira queda em relação ao ano anterior (-1,1%), quando houve 3.971. Os dados informados pela Sesp fazem parte da consolidação dos números de crimes violentos registrados em 2016. Em BH, ocorreu um aumento dos crimes, que passaram de 550 para 568, no comparativo de 2015 com 2016 (%2b3,2%). Casos recentes na cidade voltaram a acender o alerta sobre a questão: na quinta-feira passada, foi preso um homem suspeito de ter feito pelo menos três vítimas – duas estudantes de 14 e 17 anos e uma mulher de 41 anos – nos últimos 50 dias na Região da Pampulha.
A titular da Delegacia de Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (Demid), Camila Miller, informa que este mês houve aumento de cerca de 20% nos casos de estupro em BH. “Nos últimos 30 dias estão chegando mais ocorrências e aparecendo mais na mídia, mas nada que vá impactar as estatísticas. Há períodos com mais casos e outros com menos”, afirma. A delegada acrescenta que a redução dos números é dificultada pelas próprias características da investigação. “É um crime muito difícil de se apurar, pois o autor o comete às escondidas. Se o homem é conhecido da vítima, temos um elemento. Mas, quando a mulher é abordada no meio da rua, muitas vezes é impedida até de olhar para o rosto dele. Quando a vítima não tem muitos dados e não há outros rastros, é complicado”, afirma.
Camila Miller ressalta que é imprescindível que as vítimas compareçam à delegacia para prestar depoimento e mudar o quadro de subnotificação dos crimes sexuais. “Muitas ficam com vergonha e não querem reviver o momento. Algumas vezes, só aparecem depois de ser encorajadas por algo semelhante que ocorre com alguém. É importante estarem seguras para vir. Aqui, serão atendidas por mulheres”, explica.
VÍTIMAS DO SILÊNCIO
Criminalista e mestre em ciências sociais, o advogado Warley Belo destaca que a subnotificação sofre influência do chamado “escândalo processual”: as vítimas preferem o silêncio a levar o caso à polícia e à Justiça e torná-lo público.
Segundo Warley, integrante da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB/MG), publicações indicam que, na maioria dos casos, os autores são conhecidos das vítimas. “O fato de haver uma Delegacia de Mulheres incentiva as denúncias, pois elas sabem que chegarão lá e serão recebidas e atendidas por uma mulher”, diz. Outro fato a que ele atribui o aumento dos casos de estupro é a própria lei.
Modificada em 2009, a redação do artigo 213 do Código Penal, que trata do assunto, ampliou o universo do que é considerado estupro. “Abarca desde um beijo mais agressivo, uma passada de mão, uma encostada abusiva no ônibus ou metrô até a conjunção carnal propriamente dita. No carnaval, por exemplo, quando muitas mulheres são pegas à força para ser beijadas, pode ser configurado estupro, que tem uma pena pesada, de 6 a 10 anos de prisão”, diz. O advogado considera que as punições são desproporcionais. “O que temos hoje é uma junção da violência no artigo 213, que desperta uma crítica em relação ao excesso. Talvez em decorrência disso tenhamos números mais altos”, explica.
MACHISMO Coordenadora da casa Sempre Viva, de acolhimento à mulher vítima de violência, a psicóloga Carolina Mesquita diz que não se pode pensar em uma explicação única para um fenômeno que é recorrente, mas que passa por uma questão cultural.
“Podemos pensar numa doença mental, mas não dá para fechar a questão só nela. Que doença é essa, que tratamento haverá para alguém que se comporta dessa forma? Claro que não dá para pensar em uma ideia de normalidade comportamental, mas será que um namorado, um marido, um pai, uma pessoa que escolhe alguém na rua e a violenta entende que há uma anormalidade nesse comportamento?”, questiona.
Para Carolina, há uma cultura machista que determina que as mulheres tenham cuidado com a roupa que vestem, com o local por onde circulam à noite, com o ponto de ônibus. “Há uma naturalização tão grande em relação a como esse machismo está arraigado na nossa cultura que nos acostumamos, como se fosse normal, a não andar à noite e a não chegar em casa à noite sozinha, dependendo do lugar, a não ir de short ou de vestido curto. Porque há uma história cultural e social de que as mulheres são propriedades dos homens, ainda que não queiram, que se perpetua nos nossos espaços cotidianos.”
O que diz a lei
Artigo 213 do Código Penal
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: pena de 6 a 10 anos de prisão. Se resultar em lesão corporal ou vítima for menor de 18 anos ou maior de 14: 8 a 12 anos. Se houver morte: 12 a 30 anos. (O atentado violento ao pudor, usado até 2009 para caracterizar a violência contra os homens, foi retirado da legislação, que agora admite que tanto mulheres quanto homens podem ser vítimas de estupro.)
Violência em números
Ocorrências de estupro nos últimos cinco anos
» Minas Gerais
2016 3.926
2015 3.971
2014 4.003
2013 4.112
2012 4.135
» Belo Horizonte
2016 568
2015 550
2014 567
2013 553
2012 648