Restauração revela pinturas escondidas em igreja de Cachoeira do Campo

Intervenções na Igreja Nossa Senhora das Dores, no distrito de Ouro Preto, trazem de volta obras de arte sob várias camadas de tinta no forro e nas paredes

Gustavo Werneck
Uma das pinturas foi encontrada por técnicos logo na entrada do imóvel - Foto: Beto Novaes/EM/D.A PRESS
Ouro Preto – Ressurreição de cores, formas e beleza. O restauro da Igreja Nossa Senhora das Dores, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, na Região Central, traz de volta pinturas escondidas por décadas sob várias camadas de tinta no forro e nas paredes – em alguns pontos, até 10.

A maior descoberta está logo na entrada, no forro do átrio, onde a equipe encarregada do serviço encontrou guirlandas em policromia tampadas pelo branco, que deixava à mostra apenas a cena do calvário, correspondente a 10% do trabalho original. Reivindicada pela comunidade e custeada integralmente com recursos do Fundo Municipal do Patrimônio (Funpatri), no valor de R$ 970 mil, a obra deverá ser concluída e entregue em outubro, informa o secretário municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, Zaqueu Astoni Moreira.

Na manhã de quinta-feira, a equipe do Estado de Minas conferiu o avanço do projeto de restauro, um quadro oposto ao de setembro de 2010, quando o tecnólogo em conservação e restauração Rodrigo da Conceição Gomes, presidente da Associação dos Amigos de Cachoeira do Campo (Amic) e coordenador da comunidade de Nossa Senhora das Dores, alertava para o risco de perda do templo construído em 1761 e considerado o mais antigo do país dedicado a Nossa Senhora das Dores, “conforme documento do Arquivo Ultramarino de Lisboa, Portugal”. Para ele, a intervenção significa “uma grande vitória dos moradores, que pediram providência às autoridades e fizeram novena”.

Tombada pelo município em novembro de 2010 e alvo de reparos no telhado no ano seguinte, a igreja ganhou, na sequência, um projeto arquitetônico para recuperação e um pedido, dos moradores, ao Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compatri) para colocá-lo em prática. Coordenadora do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Histórias pela Prefeitura de Ouro Preto, a arquiteta Débora Queiroz conta que a intervenção do templo foi definida como prioritária e dividida em dois tempos. Na primeira fase, ao custo de R$ 380 mil, foram executados os serviços de recuperação do piso, paredes e esquadrias, implantação de manta de proteção sob a cobertura, troca de telhas, preenchimento de trincas e drenagem no entorno. Além desse pacote de obras civis, a equipe cuidou da parte elétrica, sonorização e Sistema de Proteção contra Descargas Atmosféricas (SPDA).

“Estamos felizes com o resultado de tanta luta.
Esperamos muito para ver a igreja em obra. Ela é importante para Cachoeira do Campo, Ouro Preto e Minas”, diz a zeladora do templo e mãe de Rodrigo, Geralda Flaviana Araújo Gomes, de 68 anos. Para quem trabalha como marceneiro, atuar no restauro de uma construção do século 18 é uma experiência única, principalmente quando se refere à salvação dela. “A madeira estava cheia de cupins e com cera demais”, afirma Cláudio Braga, de 63.

ARTE COLONIAL
A segunda fase, em andamento, compreende os elementos artísticos, no valor de R$ 590 mil e também com recursos do Funpatri, explica Débora, ao lado do restaurador Sílvio Luiz Rocha Viana de Oliveira, coordenador contratado pela prefeitura para essa área, e do arquiteto Paulo Hermínio Guimarães, responsável técnico pela empresa contratada. Depois de mostrar as delicadas flores na pintura do átrio, os três se dirigem à capela-mor, que guarda a pintura da santa e contém a inscrição em latim Consolatris aflito rum (Consoladora dos aflitos). “Tudo indica se tratar da representação de um ex-voto”, explica Sílvio, numa referência ao pagamento de uma promessa por um fidalgo retratado aos pés de Nossa Senhora das Dores. Técnicos em restauração, como Lunara Cristina Silva, recuperam o forro, que tem painéis recriando cenas bíblicas - Foto: Beto Novaes/EM/D.A PRESS

O altar da capela-mor exibe um verde forte, achado “sob oito camadas de tinta de cinco cores diferentes”, mostra Sílvio, ressaltando o restauro da igreja, feito há 25 anos, por Zenith Inácio, viúva de Jair Afonso Inácio, criador do curso de conservação-restauração da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop) e com atuação no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). Sílvio revela que, no caso da madeira, havia muita cera por trás, material usado durante muito tempo para recuperar as tábuas.

Outro ponto de destaque está nas paredes, algo também surpreendente para a equipe: debaixo de tinta, foi localizado um barrado com pinturas marmorizadas, no tom salmão e datadas de 1870-1880, creditadas a italianos que moraram na região no século 19. Também fiéis às cores que as prospecções mostraram, os restauradores decidiram por um tom bege para a parede sobre o barrado.

A obra tão ansiosamente aguardada pela comunidade de Cachoeira do Campo não para de encantar. Para quem pensa que acabou, há mais surpresas perto do forro da nave, a quatro metros de altura. De pé ou sentados sobre a estrutura de andaimes, recuperam o forro com narrativa bíblica os técnicos em restauração Ernesto Alves de Almeida, Elen Carvalho, Ana Paula Gonçalves dos Reis, Lunara Cristina Ferreira da Silva, Lindalva Ferreira de Freitas e Adriane Juliano Barroso. “É um trabalho muito gratificante”, avalia Lunara, que já trabalhou em outras igrejas dos tempos coloniais, enquanto Ana Paula brinca que ali, “pertinho do céu”, é possível desempenhar tarefas muito compensadoras e benéficas para o patrimônio da cidade.

HISTÓRIA
Construída em 1761 para as cerimônias da semana santa, a Igreja Nossa Senhora das Dores tem no forro o maior destaque. O que chama logo a atenção de quem entra é a ornamentação com os 15 painéis da nave, de inspiração medieval, representando a Paixão de Cristo, do horto das oliveiras à ressurreição.

Muitas histórias e lendas rondam a história da igreja. A imagem da santa de roca, conforme a tradição oral, chegou a Cachoeira do Campo em meados do século 18 portando várias joias, que desapareceram.
“Contam que, sob os auspícios de uma mulher chamada Maria Dolorosa, a imagem percorria as casas do distrito angariando fundos para a construção da igreja. Outra antiga lenda afirma que os inconfidentes se reuniam no interior do templo para, do alto de sua torre esquerda, espionar o Visconde de Barbacena em seu palácio”, conta Rodrigo Gomes.

Memória
Luta pela preservação


Em 15 de setembro de 2010, dia dedicado a Nossa Senhora das Dores, a comunidade católica de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, na Região Central de Minas, fortaleceu a campanha para salvar o templo dedicado à santa. Fechada havia três anos, a edificação, no Bairro de Nossa Senhora das Dores, apresentava sérios problemas. O forro estava cedendo e, com isso, imperava o medo de se perderem as pinturas originais, tanto na capela-mor, que traz a imagem de Nossa Senhora das Dores em meio a anjos, como na nave, com os da via-sacra, sem autoria identificada. Por medida de segurança, todas as imagens foram retiradas e guardadas em outro local. Além de pedir a intercessão de Nossa Senhora das Dores, a comunidade rezou, todo dia 28, para São Judas Tadeu, o das causas impossíveis. “Deu certo. Uma noite, sonhei que uma guirlanda tinha sido encontrada sob a tinta branca”, conta Rodrigo, que reside em Barbacena e está sempre em Cachoeira do Campo.
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