Entre que a casa é síria – e fique à vontade, como se ela fosse sua, tal a acolhida carinhosa dos moradores, o monte de histórias que se ouve do país do Oriente Médio, em guerra civil desde 2011, e as comidas temperadas com especiarias compradas ainda em mercados de Damasco, uma das cidades mais antigas do mundo. Há três anos residente em Belo Horizonte, a família Tomeh, pioneira de refugiados sírios a chegar à cidade, sobrevive bravamente para “pagar as contar e viver com dignidade”, conforme explica o engenheiro de alimentos Khaled, de 32 anos, casado com a conterrânea Mary e pai de Yasmin, de 2, nascida em BH.
Bom de cozinha e conhecedor profundo da culinária árabe, Khaled Tomeh, também formado em agronomia, comanda a produção doméstica de quibes, esfirras, pastas e outros alimentos, entrega marmitex em domicílio, cozinha na casa das pessoas, aceita encomendas e começa, devagar, a fazer reuniões em espaços, como cafeterias, ao lado dos pais Waled, de 61, veterinário e professor de matemática, e Maria, de 58, professora de língua árabe, e do irmão George, arquiteto e tradutor de árabe para o inglês que ganha a vida como manobrista no estacionamento da Igreja São José, no Centro.
Em Belo Horizonte, segundo o consulado da Síria, há 200 refugiados. Em agosto, a representação diplomática vai promover uma mobilização na Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul, em prol da paz no país, cujo conflito já matou centenas de milhares de pessoas. Os organizadores adiantam que não haverá barraquinhas, pois não se trata de festa, mas de um ato solidário.
Fim dos planos
A guerra civil arruinou os planos e a economia da família Tomeh, dona de empresas e fazendas de criação de ovelhas, gado leiteiro e frangos, além de fábrica de alimentos. Natural de Homs, “que foi destruída em cerca de 80% pelos bombardeios”, lembra Khaled, a família estava na Líbia, Norte da África, expandindo os negócios com abertura de uma empresa, quando os protestos populares evoluíram para a violenta revolta opondo governo a rebeldes.
“Lá está uma bagunça, e a situação não vai ser resolvida em pouco tempo. Vai demorar 20 anos ou mais”, afirma Khaled, o mais fluente em português do grupo, que, na quarta-feira, abriu a intimidade para receber, num almoço, a equipe do Estado de Minas e o vigário paroquial da São José, padre Flávio Campos, admirador da hospitalidade e dos pratos. “São pessoas muito especiais, inteligentes, e a comida, deliciosa”, afirma o religioso ao ver a mesa posta com arroz árabe com frango cozido, quibe cru, coalhada seca, pão sírio integral e, claro, quibes e esfirras recém-preparados.
Antes de se sentar à mesa, os Tomeh rezam o pai-nosso em árabe. Em seguida, Waled se senta à cabeceira, seguido da mulher. Somente depois é que os filhos e a nora, com a pequena Yasmin no colo, tomam seus lugares. “Na Síria, o almoço é mais tarde, lá pelas seis da tarde. E ninguém come sem que todos estejam sentados”, conta o engenheiro de alimentos, que também estudou agronomia para ficar à frente dos empreendimentos familiares. Mostrando um enorme terço com a contas feitas de madeira de oliveira, Khaled observa que a família é cristã e esclarece que “na Síria, não há esta divisão, como no Brasil, de católicos e protestantes”.
Mary, que também se expressa em português e tem os pais morando na Síria, cita um ditado popular de sua terra: “A pessoa gosta da comida o tanto que come; se deixar no prato, é porque não gostou”. Diante de tantos alimentos saborosos e elogios dos convidados, o melhor é seguir à risca e aproveitar ao máximo cada garfada. “Fazemos tudo em casa, sem qualquer produto químico. Nada é industrializado, é a comida árabe original”, orgulha-se Khaled. Para provar, ele mostra um canteiro com hortelã, alecrim e outras plantas, na varanda ensolarada do apartamento, no Centro de BH, e sacos plásticos com temperos árabes legítimos.
Trajetória
Embora o assunto seja indigesto para a hora do almoço, não há como fugir da chegada da família a Belo Horizonte e da saída de um país aos pedaços. Como a situação na Líbia também estava instável politicamente, a família retornou à Síria para retomar a vida, mas não havia mais empresa, casa e uma história particular. “Tudo foi destruído. Não temos uma foto da infância, nada”, revela Khaled sem sinal de desespero. “Saudade sempre tem”, comenta a mãe com os olhos brilhando, embora sem derramar lágrimas.
Vendo que continuar em Homs era impraticável, os Tomeh alugaram um apartamento em Damasco e passaram a conviver com os dias de terror. “Perdemos muitos parentes. Uma prima morreu ao sair da faculdade, junto com 50 jovens, um primo ficou cego de um olho, amigos morreram”, relata Khaled, que, paralelamente aos negócios, fazia trabalhos humanitários na Líbia, como atuar em ação da Organização das Nações Unidas contra o tráfico de pessoas. “Na África, isso acontece muito. Sempre lutei pela dignidade”. Sentado em frente, George, também fluente em português, lembra que houve uma explosão bem perto dele, o que quase lhe custou a vida em Damasco.
Decidida a deixar o país, a família fez contatos com embaixadas e viu que o Brasil estava recebendo refugiados sírios. A escolha de BH foi definida via internet, por meio de um site “que avaliava bem a segurança, o clima e o custo de vida”. Sem conhecer ninguém e nada de português, eles decidiram vir para o país num grupo de 13 familiares, sabendo, de antemão, que teriam documentos e não necessariamente um emprego.
“O início foi muito difícil, pois não queremos caridade, e sim viver com dignidade”, resume Khaled, que resolvia o que podia em inglês. Cada um se virou de um jeito, trabalhando em lanchonete, fazendo pequenos consertos, serviços de informática, enfim, de tudo um pouco. “Sem dinheiro é assim: se não produzir, ele acaba”, analisa o engenheiro de alimentos, que usou a experiência para fazer o que sabe melhor: alimentos.
Coração aberto
O passado ficou para trás e a família não pretende retornar à Síria, mesmo que “a bagunça” termine. “O que mais quero, hoje, é ficar em segurança” – traduzindo: “Não ter medo do amanhã”. Dessa forma, vê o mundo com outros olhos. “Nosso futuro está no Brasil e se chama Yasmin, nascida no Hospital da Santa Casa, em Belo Horizonte. Ela é brasileira e já entende português, mesmo que todos falem em árabe em casa”, destaca logo após servir um café à moda árabe, com cardamomo, acompanhado de biscoitos feitos com o grão de café.
Para aproximar os mineiros das suas iguarias, a família batizou a “comida árabe sob encomenda” de baity ou “minha casa”, na língua de Camões. Khaled convida os belo-horizontinos para provar seus salgados e doces, entre eles a neve do líbano, nome inventado por ele e feito com pistache, no próximo dia 11, das 11h às 19h, na cafeteria D’a Gostim, que fica na Rua Bernardo Guimarães, 2.520, no Bairro Santo Agostinho, na Centro-Sul. “Temos produtos sem glúten e pão integral”, conta o profissional, que enaltece uma qualidade dos brasileiros. “Nesta terra, a gente não se sente estrangeiro. O povo tem coração aberto.” Os interessados nos serviços podem ligar para (31) 97344-2678 (também WhatsApp) ou mandar e-mail para baitydelicias@gmail.com. No Facebook: baitydeliciasarabes.
Dia Mundial
Milhões de pessoas que foram obrigadas a deixar seus países devido a guerras, perseguições e outras situações de alto risco para a vida serão lembradas em 20 de junho, no Dia Mundial do Refugiado, data sob a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU). A estimativa é de que hoje, no planeta, há cerca de 50 milhões de pessoas deslocadas da terra natal.
Bom de cozinha e conhecedor profundo da culinária árabe, Khaled Tomeh, também formado em agronomia, comanda a produção doméstica de quibes, esfirras, pastas e outros alimentos, entrega marmitex em domicílio, cozinha na casa das pessoas, aceita encomendas e começa, devagar, a fazer reuniões em espaços, como cafeterias, ao lado dos pais Waled, de 61, veterinário e professor de matemática, e Maria, de 58, professora de língua árabe, e do irmão George, arquiteto e tradutor de árabe para o inglês que ganha a vida como manobrista no estacionamento da Igreja São José, no Centro.
Em Belo Horizonte, segundo o consulado da Síria, há 200 refugiados. Em agosto, a representação diplomática vai promover uma mobilização na Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul, em prol da paz no país, cujo conflito já matou centenas de milhares de pessoas. Os organizadores adiantam que não haverá barraquinhas, pois não se trata de festa, mas de um ato solidário.
Fim dos planos
A guerra civil arruinou os planos e a economia da família Tomeh, dona de empresas e fazendas de criação de ovelhas, gado leiteiro e frangos, além de fábrica de alimentos. Natural de Homs, “que foi destruída em cerca de 80% pelos bombardeios”, lembra Khaled, a família estava na Líbia, Norte da África, expandindo os negócios com abertura de uma empresa, quando os protestos populares evoluíram para a violenta revolta opondo governo a rebeldes.
“Lá está uma bagunça, e a situação não vai ser resolvida em pouco tempo. Vai demorar 20 anos ou mais”, afirma Khaled, o mais fluente em português do grupo, que, na quarta-feira, abriu a intimidade para receber, num almoço, a equipe do Estado de Minas e o vigário paroquial da São José, padre Flávio Campos, admirador da hospitalidade e dos pratos. “São pessoas muito especiais, inteligentes, e a comida, deliciosa”, afirma o religioso ao ver a mesa posta com arroz árabe com frango cozido, quibe cru, coalhada seca, pão sírio integral e, claro, quibes e esfirras recém-preparados.
Antes de se sentar à mesa, os Tomeh rezam o pai-nosso em árabe. Em seguida, Waled se senta à cabeceira, seguido da mulher. Somente depois é que os filhos e a nora, com a pequena Yasmin no colo, tomam seus lugares. “Na Síria, o almoço é mais tarde, lá pelas seis da tarde. E ninguém come sem que todos estejam sentados”, conta o engenheiro de alimentos, que também estudou agronomia para ficar à frente dos empreendimentos familiares. Mostrando um enorme terço com a contas feitas de madeira de oliveira, Khaled observa que a família é cristã e esclarece que “na Síria, não há esta divisão, como no Brasil, de católicos e protestantes”.
Mary, que também se expressa em português e tem os pais morando na Síria, cita um ditado popular de sua terra: “A pessoa gosta da comida o tanto que come; se deixar no prato, é porque não gostou”. Diante de tantos alimentos saborosos e elogios dos convidados, o melhor é seguir à risca e aproveitar ao máximo cada garfada. “Fazemos tudo em casa, sem qualquer produto químico. Nada é industrializado, é a comida árabe original”, orgulha-se Khaled. Para provar, ele mostra um canteiro com hortelã, alecrim e outras plantas, na varanda ensolarada do apartamento, no Centro de BH, e sacos plásticos com temperos árabes legítimos.
Trajetória
Embora o assunto seja indigesto para a hora do almoço, não há como fugir da chegada da família a Belo Horizonte e da saída de um país aos pedaços. Como a situação na Líbia também estava instável politicamente, a família retornou à Síria para retomar a vida, mas não havia mais empresa, casa e uma história particular. “Tudo foi destruído. Não temos uma foto da infância, nada”, revela Khaled sem sinal de desespero. “Saudade sempre tem”, comenta a mãe com os olhos brilhando, embora sem derramar lágrimas.
Vendo que continuar em Homs era impraticável, os Tomeh alugaram um apartamento em Damasco e passaram a conviver com os dias de terror. “Perdemos muitos parentes. Uma prima morreu ao sair da faculdade, junto com 50 jovens, um primo ficou cego de um olho, amigos morreram”, relata Khaled, que, paralelamente aos negócios, fazia trabalhos humanitários na Líbia, como atuar em ação da Organização das Nações Unidas contra o tráfico de pessoas. “Na África, isso acontece muito. Sempre lutei pela dignidade”. Sentado em frente, George, também fluente em português, lembra que houve uma explosão bem perto dele, o que quase lhe custou a vida em Damasco.
Decidida a deixar o país, a família fez contatos com embaixadas e viu que o Brasil estava recebendo refugiados sírios. A escolha de BH foi definida via internet, por meio de um site “que avaliava bem a segurança, o clima e o custo de vida”. Sem conhecer ninguém e nada de português, eles decidiram vir para o país num grupo de 13 familiares, sabendo, de antemão, que teriam documentos e não necessariamente um emprego.
“O início foi muito difícil, pois não queremos caridade, e sim viver com dignidade”, resume Khaled, que resolvia o que podia em inglês. Cada um se virou de um jeito, trabalhando em lanchonete, fazendo pequenos consertos, serviços de informática, enfim, de tudo um pouco. “Sem dinheiro é assim: se não produzir, ele acaba”, analisa o engenheiro de alimentos, que usou a experiência para fazer o que sabe melhor: alimentos.
Coração aberto
O passado ficou para trás e a família não pretende retornar à Síria, mesmo que “a bagunça” termine. “O que mais quero, hoje, é ficar em segurança” – traduzindo: “Não ter medo do amanhã”. Dessa forma, vê o mundo com outros olhos. “Nosso futuro está no Brasil e se chama Yasmin, nascida no Hospital da Santa Casa, em Belo Horizonte. Ela é brasileira e já entende português, mesmo que todos falem em árabe em casa”, destaca logo após servir um café à moda árabe, com cardamomo, acompanhado de biscoitos feitos com o grão de café.
Para aproximar os mineiros das suas iguarias, a família batizou a “comida árabe sob encomenda” de baity ou “minha casa”, na língua de Camões. Khaled convida os belo-horizontinos para provar seus salgados e doces, entre eles a neve do líbano, nome inventado por ele e feito com pistache, no próximo dia 11, das 11h às 19h, na cafeteria D’a Gostim, que fica na Rua Bernardo Guimarães, 2.520, no Bairro Santo Agostinho, na Centro-Sul. “Temos produtos sem glúten e pão integral”, conta o profissional, que enaltece uma qualidade dos brasileiros. “Nesta terra, a gente não se sente estrangeiro. O povo tem coração aberto.” Os interessados nos serviços podem ligar para (31) 97344-2678 (também WhatsApp) ou mandar e-mail para baitydelicias@gmail.com. No Facebook: baitydeliciasarabes.
Dia Mundial
Milhões de pessoas que foram obrigadas a deixar seus países devido a guerras, perseguições e outras situações de alto risco para a vida serão lembradas em 20 de junho, no Dia Mundial do Refugiado, data sob a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU). A estimativa é de que hoje, no planeta, há cerca de 50 milhões de pessoas deslocadas da terra natal.