Invasões plantam vilas às margens da Avenida Antônio Carlos

Déficit habitacional e falta de fiscalização fazem ocupações de áreas públicas e privadas se alastrarem pela via, onde foram gastos R$ 61 mi só em desapropriações

Larissa Ricci
Em alguns terrenos, como na lateral do Viaduto Moçambique, já há barracões de alvenaria, "loteamento" para mais 10 famílias e até nome: "Vila da Paz" - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

À sombra da omissão do poder público, as invasões às margens da Avenida Antônio Carlos, que liga a Região da Pampulha ao Centro de Belo Horizonte e onde já foram gastos R$ 250 milhões apenas na última duplicação, avançam a cada dia e se consolidam agora com construções de alvenaria. A multiplicação do número de barracos pode ser notada principalmente desde o Complexo da Lagoinha até o Viaduto Moçambique, no Bairro Cachoeirinha, Região Nordeste da capital, onde moradias que antes eram feitas de lona e madeira já ganharam paredes de tijolo e cimento. Entre as famílias que vivem nessas estruturas, pessoas com uma dificuldade em comum: “Se pagar aluguel, a gente morre de fome”, argumenta Clenilda Gomes, de 30 anos, que vive de “bicos” como faxineira e ocupou um dos cantos de uma área na altura do número 2.250 da via. A construção de moradias irregulares na região, registrada pelo Estado de Minas no ano passado, continua em franco progresso, alimentada pela falta de fiscalização, pelo déficit habitacional e por falhas nos programas governamentais para o setor. E por lá já se “planejam” vilas inteiras, que já foram inclusive batizadas pelos ocupantes.

Na casa de um cômodo de Clenilda, com um sofá-cama amarelo, uma televisão ao centro e um fogão à direita, moram ainda o marido, Leandro Batista, de 28, dois filhos, de 10 e 16, e dois cachorros. Na parte externa, um banheiro ainda está em construção. “Não estamos aqui por opção, é por necessidade mesmo.

Chegamos há cinco meses, fomos a segunda família a construir. Eles podiam nos deixar aqui, só queremos um lugar para morar”, disse Clenilda, contando que representantes da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) já estiveram lá, mas que nenhuma providência foi tomada.

Quando a equipe de reportagem do EM chegou ao local, o pedreiro Wagner Pereira Santos, de 42, jogava areia para cobrir uma erosão no espaço entre os barracões, sob o sol escaldante do meio da tarde. “Queremos deixar tudo plano”, disse ele, contando que mais 10 famílias estão para chegar. O espaço, explica ele, foi dividido em cinco metros de largura para a construção de cada barracão. “Tem espaço para 12 famílias, com uma casa colada na outra. Já está tudo organizado, não vai caber mais ninguém”, disse o pedreiro. “Já temos até nome: vai se chamar Vila da Paz”, disse. Para o ocupante, a chegada de mais famílias “trará benefícios para a região”. “Antes, usuários de drogas ficavam aqui. Muitos assaltavam ônibus na avenida e se escondiam no mato. Também era um lugar em que tinha estupro. Se a prefeitura não cuida, nós pelo menos viemos para cá e passamos a limpar”, disse o pedreiro.

A vizinhança pensa diferente. Tânia Abreu, de 52 anos, mora há 30 em uma casa que dá vista para os novos vizinhos.

Ela conta que o problema no local é constante, só mudam os invasores. “Se não são eles que estão aqui, são outros. Mas agora já tem até casa de tijolo, o que complica para tirá-los”, disse. Ainda segundo a dona de casa, a filha reclama de barulho durante a noite. “Outro problema é o fogo. Já tivemos que chamar o Corpo de Bombeiros duas vezes”, disse. A mesma erosão em que Wagner joga terra preocupa a moradora. “Lá é onde passa o nosso cano de esgoto. Toda vez que colocam fogo queimam o cano e a terra fica encharcada. Temos medo dos riscos pela erosão, embora a Defesa Civil tenha dito que não há perigo”, afirmou.

IRREGULARIDADE A Prefeitura de BH informou que o terreno ocupado no número 2.250 da Avenida Antônio Carlos compreende áreas particulares e públicas.

De acordo com a Secretaria Municipal Adjunta de Fiscalização, as construções são irregulares, foram embargadas, e o processo fiscal segue conforme previsto na legislação. “A prefeitura investiu aproximadamente R$ 61 milhões entre desapropriações e remoções em todo o trecho da duplicação da Avenida Antônio Carlos, que foram concluídas em 2007”, acrescentou, em nota.

A Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) informou que foram desapropriados no local da ocupação um total de 12 lotes. Em relação aos terrenos públicos, a Procuradoria-Geral do Município ajuizou ação de reintegração de posse na 1ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte, em 24 de fevereiro do ano passado, e aindaaguarda sentença. As desapropriações em espaços particulares dependem de ações dos proprietários.

Ainda de acordo com PBH, todos os procedimentos adotados pelo município em relação a desapropriações respeitam, acima de tudo, a dignidade e a segurança dos envolvidos. “A prefeitura, com a preocupação de reduzir os transtornos decorrentes de decisões judiciais nos processos de desapropriação, comunica previamente os proprietários e ocupantes dos imóveis sobre a data prevista do cumprimento da ordem judicial, e coloca à disposição toda a sua estrutura social e logística, como transporte dos desapropriados em vulnerabilidade social e seus pertences.”

Em outros pontos, barracos são feitos com tapumes, que com o tempo darão lugar a tijolos - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

Faltam moradias e política urbana

 

Segundo dados da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Nacional de Habitação, Minas Gerais é a segunda unidade da federação com o maior carência de habitações no país, perdendo apenas para São Paulo. Em 2013, o estado precisava de 493 mil unidades, número que aumentou 7,3% em 2014, quando essa necessidade saltou para 529 mil moradias. Só na Região Metropolitana de BH, o estudo aponta serem necessárias 157.019 habitações. BH figurava então como a sétima capital do Brasil com maior déficit, com demanda de 78 mil lares, número que hoje é estimado pela prefeitura em cerca de 56 mil.

A especialista Raquel Viana, pesquisadora da Fundação João Pinheiro, explica que o déficit é calculado a partir de quatro componentes: domicílios precários (locais e imóveis sem fins residenciais que servem como moradia, como barracas, imóveis comerciais, pontes e viadutos); coabitação (quando há mais de uma família por domicílio); ônus excessivo com aluguel (famílias urbanas com renda de até três salários mínimos e que gastam 30% ou mais com moradia); e adensamento excessivo de imóvel alugado (quando há três pessoas ou mais por dormitório).

Além do déficit habitacional, o arquiteto e urbanista Sérgio Myssior, integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU/MG), avalia que as ocupações irregulares estão ligadas à fragilidade do programa de habitação. “É perceptível o aumento do déficit habitacional na RMBH e a insuficiência do atendimento da demanda, mesmo com o avanço do Programa Minha casa minha vida. Com a necessidade urgente, muitas áreas ociosas e subaproveitadas são ocupadas”, disse. Segundo o especialista, há também falha de planejamento e gestão urbana para a periferia, com falta de infraestrutura, equipamentos públicos e inclusão social.

Os atuais programas de habitação, avalia, estão em áreas cada vez mais distantes do Centro de BH. Neles, moradores enfrentam problemas como a falta de estrutura e custos maiores com transporte e saúde, o que também leva à busca de espaços alternativos para morar. Para ele, isso faz com que muitas famílias se submetam a ocupações irregulares, inclusive em áreas de risco de desmoronamento e alagamento. “Precisamos de políticas públicas mais inclusivas, que deem oportunidade igual a todos, com acessibilidade, saneamento básico, luz e acesso a trabalho e renda”, disse.

O urbanista defende a produção de habitações de interesse social em todo o tecido urbano, especialmente nas áreas já providas de infraestrutura. “Um olhar mais atento é capaz de vislumbrar edifícios subaproveitados na área central, vazios urbanos e até áreas que poderiam ser revitalizadas para atender a programas habitacionais”, disse. Ainda segundo ele, para isso, estado e município poderiam usar diversos instrumentos de política urbana, favorecendo a criação de habitações de interesse social em áreas com melhor estrutura urbana instalada.

- Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press

Um ano em área de risco


Há um ano, o Estado de Minas flagrou na alça do Viaduto Moçambique, no lado oposto à ocupação do número 2.250, um homem carregando uma lata de material de construção. A paisagem de 2016, com cinco barracos com tijolos e tapumes, deu lugar a um imóvel com porta de ferro, ladrilhos e uma lage. Na ocasião, o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico da gestão anterior, Hipérides Atheniense, afirmou que a Prefeitura de BH havia ajuizado ação para retirada das famílias: “É uma situação perigosa, pois se trata de uma área de risco, um barranco. Depois acontece alguma coisa e vão culpar o município. O processo judicial está tramitando, mas ainda não há definição”, disse na época o secretário, admitindo que aquela era a “enésima” ocupação na Antônio Carlos.

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