À sombra da omissão do poder público, as invasões às margens da Avenida Antônio Carlos, que liga a Região da Pampulha ao Centro de Belo Horizonte e onde já foram gastos R$ 250 milhões apenas na última duplicação, avançam a cada dia e se consolidam agora com construções de alvenaria. A multiplicação do número de barracos pode ser notada principalmente desde o Complexo da Lagoinha até o Viaduto Moçambique, no Bairro Cachoeirinha, Região Nordeste da capital, onde moradias que antes eram feitas de lona e madeira já ganharam paredes de tijolo e cimento. Entre as famílias que vivem nessas estruturas, pessoas com uma dificuldade em comum: “Se pagar aluguel, a gente morre de fome”, argumenta Clenilda Gomes, de 30 anos, que vive de “bicos” como faxineira e ocupou um dos cantos de uma área na altura do número 2.250 da via. A construção de moradias irregulares na região, registrada pelo Estado de Minas no ano passado, continua em franco progresso, alimentada pela falta de fiscalização, pelo déficit habitacional e por falhas nos programas governamentais para o setor. E por lá já se “planejam” vilas inteiras, que já foram inclusive batizadas pelos ocupantes.
Quando a equipe de reportagem do EM chegou ao local, o pedreiro Wagner Pereira Santos, de 42, jogava areia para cobrir uma erosão no espaço entre os barracões, sob o sol escaldante do meio da tarde. “Queremos deixar tudo plano”, disse ele, contando que mais 10 famílias estão para chegar. O espaço, explica ele, foi dividido em cinco metros de largura para a construção de cada barracão. “Tem espaço para 12 famílias, com uma casa colada na outra. Já está tudo organizado, não vai caber mais ninguém”, disse o pedreiro. “Já temos até nome: vai se chamar Vila da Paz”, disse. Para o ocupante, a chegada de mais famílias “trará benefícios para a região”. “Antes, usuários de drogas ficavam aqui. Muitos assaltavam ônibus na avenida e se escondiam no mato. Também era um lugar em que tinha estupro. Se a prefeitura não cuida, nós pelo menos viemos para cá e passamos a limpar”, disse o pedreiro.
A vizinhança pensa diferente. Tânia Abreu, de 52 anos, mora há 30 em uma casa que dá vista para os novos vizinhos. Ela conta que o problema no local é constante, só mudam os invasores. “Se não são eles que estão aqui, são outros. Mas agora já tem até casa de tijolo, o que complica para tirá-los”, disse. Ainda segundo a dona de casa, a filha reclama de barulho durante a noite. “Outro problema é o fogo. Já tivemos que chamar o Corpo de Bombeiros duas vezes”, disse. A mesma erosão em que Wagner joga terra preocupa a moradora. “Lá é onde passa o nosso cano de esgoto. Toda vez que colocam fogo queimam o cano e a terra fica encharcada. Temos medo dos riscos pela erosão, embora a Defesa Civil tenha dito que não há perigo”, afirmou.
IRREGULARIDADE A Prefeitura de BH informou que o terreno ocupado no número 2.250 da Avenida Antônio Carlos compreende áreas particulares e públicas. De acordo com a Secretaria Municipal Adjunta de Fiscalização, as construções são irregulares, foram embargadas, e o processo fiscal segue conforme previsto na legislação. “A prefeitura investiu aproximadamente R$ 61 milhões entre desapropriações e remoções em todo o trecho da duplicação da Avenida Antônio Carlos, que foram concluídas em 2007”, acrescentou, em nota.
A Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) informou que foram desapropriados no local da ocupação um total de 12 lotes. Em relação aos terrenos públicos, a Procuradoria-Geral do Município ajuizou ação de reintegração de posse na 1ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte, em 24 de fevereiro do ano passado, e aindaaguarda sentença. As desapropriações em espaços particulares dependem de ações dos proprietários.
Ainda de acordo com PBH, todos os procedimentos adotados pelo município em relação a desapropriações respeitam, acima de tudo, a dignidade e a segurança dos envolvidos. “A prefeitura, com a preocupação de reduzir os transtornos decorrentes de decisões judiciais nos processos de desapropriação, comunica previamente os proprietários e ocupantes dos imóveis sobre a data prevista do cumprimento da ordem judicial, e coloca à disposição toda a sua estrutura social e logística, como transporte dos desapropriados em vulnerabilidade social e seus pertences.”
Faltam moradias e política urbana
Segundo dados da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Nacional de Habitação, Minas Gerais é a segunda unidade da federação com o maior carência de habitações no país, perdendo apenas para São Paulo. Em 2013, o estado precisava de 493 mil unidades, número que aumentou 7,3% em 2014, quando essa necessidade saltou para 529 mil moradias. Só na Região Metropolitana de BH, o estudo aponta serem necessárias 157.019 habitações. BH figurava então como a sétima capital do Brasil com maior déficit, com demanda de 78 mil lares, número que hoje é estimado pela prefeitura em cerca de 56 mil.
A especialista Raquel Viana, pesquisadora da Fundação João Pinheiro, explica que o déficit é calculado a partir de quatro componentes: domicílios precários (locais e imóveis sem fins residenciais que servem como moradia, como barracas, imóveis comerciais, pontes e viadutos); coabitação (quando há mais de uma família por domicílio); ônus excessivo com aluguel (famílias urbanas com renda de até três salários mínimos e que gastam 30% ou mais com moradia); e adensamento excessivo de imóvel alugado (quando há três pessoas ou mais por dormitório).
Além do déficit habitacional, o arquiteto e urbanista Sérgio Myssior, integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU/MG), avalia que as ocupações irregulares estão ligadas à fragilidade do programa de habitação. “É perceptível o aumento do déficit habitacional na RMBH e a insuficiência do atendimento da demanda, mesmo com o avanço do Programa Minha casa minha vida. Com a necessidade urgente, muitas áreas ociosas e subaproveitadas são ocupadas”, disse. Segundo o especialista, há também falha de planejamento e gestão urbana para a periferia, com falta de infraestrutura, equipamentos públicos e inclusão social.
Os atuais programas de habitação, avalia, estão em áreas cada vez mais distantes do Centro de BH. Neles, moradores enfrentam problemas como a falta de estrutura e custos maiores com transporte e saúde, o que também leva à busca de espaços alternativos para morar. Para ele, isso faz com que muitas famílias se submetam a ocupações irregulares, inclusive em áreas de risco de desmoronamento e alagamento. “Precisamos de políticas públicas mais inclusivas, que deem oportunidade igual a todos, com acessibilidade, saneamento básico, luz e acesso a trabalho e renda”, disse.
O urbanista defende a produção de habitações de interesse social em todo o tecido urbano, especialmente nas áreas já providas de infraestrutura. “Um olhar mais atento é capaz de vislumbrar edifícios subaproveitados na área central, vazios urbanos e até áreas que poderiam ser revitalizadas para atender a programas habitacionais”, disse. Ainda segundo ele, para isso, estado e município poderiam usar diversos instrumentos de política urbana, favorecendo a criação de habitações de interesse social em áreas com melhor estrutura urbana instalada.
Um ano em área de risco
Há um ano, o Estado de Minas flagrou na alça do Viaduto Moçambique, no lado oposto à ocupação do número 2.250, um homem carregando uma lata de material de construção. A paisagem de 2016, com cinco barracos com tijolos e tapumes, deu lugar a um imóvel com porta de ferro, ladrilhos e uma lage. Na ocasião, o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico da gestão anterior, Hipérides Atheniense, afirmou que a Prefeitura de BH havia ajuizado ação para retirada das famílias: “É uma situação perigosa, pois se trata de uma área de risco, um barranco. Depois acontece alguma coisa e vão culpar o município. O processo judicial está tramitando, mas ainda não há definição”, disse na época o secretário, admitindo que aquela era a “enésima” ocupação na Antônio Carlos.