O avanço vertiginoso do crack também provoca estragos nos municípios do sofrido Vale do Jequitinhonha, conhecido pela riqueza cultural e de pedras preciosas e pela carência de grande parte de sua população. “Como a região é pobre e não tem emprego ou outra coisa que incentive os jovens, eles acabam buscando refúgio nas drogas”, avalia o pastor evangélico Joel Pereira dos Santos, que mantém a comunidade terapêutica Semente de Paz, entidade assistencial sem fins lucrativos, em Coronel Murta, cidade de 9,4 mil habitantes, um dos pequenos municípios da região que sofrem com a pedra. A instituição mantida pelo religioso atende dependentes de municípios vizinhos, onde, estima, nos últimos cinco anos houve um aumento de 50% no consumo de crack, responsável por 80% das pessoas encaminhadas à comunidade.
E são muitos os que precisam desse tipo de socorro. Mais do que a capacidade de quem quer socorrê-los. No Vale, o crack transforma em tormento a vida de pessoas como Daniel (nome fictício), de 29 anos. Aos 16 anos ele começou a usar maconha. Aos 20 conheceu o crack e desde então é dominado pela pedra. Já ficou internado em centros de recuperação por cinco vezes, em comunidade terapêuticas de Brumado (BA), Coronel Murta, no Jequitinhonha, e Betim, na Região Metropolitana de BH. Sempre teve recaídas. No meio desse processo, perdeu o emprego e esteve preso.
A situação representa um martírio não apenas para ele, mas também para sua família. A mãe do usuário de crack, a auxiliar de serviços gerais Lucineia (nome fictício), afirma que, para comprar a droga, Daniel passou a roubar objetos dentro de casa. Ela mesmo o denunciou à polícia por duas vezes. Em nenhuma delas o rapaz chegou a ser detido. “A polícia disse que iria procurar por ele na rua. Depois, disseram que não encontraram e ficou por isso mesmo”, relatou Lucineia, que é viúva e sobrevive com um salário-mínimo.
Na batalha para ver o filho livre da pedra ao mesmo tempo em que luta para sustentar a família, ela conta que Daniel já chegou a levar para a “boca de fumo” para trocar por droga até brinquedo de um filho dele, de 6 anos, criado pela avó. “Ele só não levou a geladeira e o sofá porque não aguenta carregar na cabeça”, conta. Coisas menores, porém, viraram fumaça nas mãos do rapaz, incluindo cinco telefones celulares, três aparelhos de DVD, dois ventiladores e até roupas de cama.
A inspiração de quem venceu
É possível vencer o crack? “Claro que sim. Basta ter força de vontade, fé em Deus e apoio da família”, garante Alex M. R., de 34 anos, ex-dependente da droga, que hoje trabalha em uma loja de serviços automotivos em Montes Claros, no Norte de Minas. Ele conta que foi apresentado aos entorpecentes aos 14 anos, quando começou a fumar maconha. Aos 16, conheceu o crack, do qual foi usuário por cerca de 12 anos. Durante esse tempo, comeu o pão que o diabo amassou. “Perdi o emprego. Cheguei ao ponto de vender até os móveis de casa para comprar droga. Larguei minha família e morei na rua durante seis meses”, conta.
O ex-dependente de crack disse que só melhorou de vida a partir do momento em que, há seis anos, foi encaminhado para tratamento na comunidade terapêutica Casa de Israel, entidade assistencial localizada na zona rural de Montes Claros, que sobrevive de doações. Depois de conseguir se libertar do vício em nove meses de tratamento, Alex decidiu continuar no centro de recuperação ajudando outras pessoas. “Fiquei lá durante quatro anos, cinco meses e 20 dias”, descreve.
Hoje, além de trabalhar, Alex leva uma vida tranquila, longe das drogas. Vive com a recepcionista Carolina, com quem se casou há dois anos. A família é formada por quatro integrantes, já que, antes de se unirem, cada um deles tinha um filho de relacionamentos anteriores. “Sinto vergonha do meu passado. Mas, ao mesmo tempo, tenho orgulho por Deus te me dado força para superar as drogas. Espero que eu possa servir de exemplo para outras pessoas”, afirma o ex-dependente químico.
A equipe de reportagem do Estado de Minas permaneceu uma manhã na comunidade terapêutica Casa de Israel, onde Alex conseguiu se reabilitar. A entidade, localizada no km 16 na BR-365 (estrada Montes Claros/Pirapora), mantém atualmente 11 internos, dos quais nove tentam se libertar do crack. Além de medicação, acompanhamento psicológico e atividades religiosas, eles contam com laborterapia, com atividades em uma horta.
O responsável pelo projeto social, Luciano Quintino, explica que a internação na comunidade terapêutica se destina a pessoas que buscam o tratamento por vontade própria. A entidade não tem fins lucrativos e sobrevive exclusivamente de doações. Mas, diante da demanda cada vez maior, devido ao aumento do consumo de crack, as comunidades terapêuticas enfrentam dificuldades, afirma. “Infelizmente, não temos apoio do poder público.”
Palavra de especialista
Robson Sávio dos Reis, integrante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O desafio da segregação
“Há uma epidemia de crack no Brasil, essa, lamentavelmente, é a verdade. É uma droga barata, de fácil aquisição e acesso. Causa uma imensa dependência. Não é causa de problemas ou da violência nas cidades, mas é uma consequência de uma sociedade excludente, violenta, injusta e desigual, que não consegue tratar de forma digna nem as pessoas que ela mesmo considera ‘normais’, menos ainda quem ela faz questão de ignorar e segregar. Por isso, trata-se de um problema de ordem social e política, que deve ser tratado como questão de saúde pública e assistência social, e não como problema policial.”
Epidemia de fim incerto
O Estado de Minas mostrou em sua edição de ontem que o crack se tornou um desafio de fim imprevisível na capital, onde chegou há 21 anos, quando o sistema de saúde registrou os primeiros casos de uso da droga. A rede de acolhimento e tratamento, que tem dado resposta positiva dentro da sua capacidade, ainda está distante de se mostrar como solução. Do total de atendimentos por dependência química, metade está relacionada a drogas e a outra metade ao álcool. Na fatia que representa o consumo de entorpecentes, o crack é responsável por 20%. Minas Gerais tem 853 municípios, mas apenas 60 Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps-AD), especializados nesse tipo de atenção. Por outro lado, projeto em BH usa experiência de ex-dependentes para ajudar usuários a vencer o vício.