Pintor de BH que superou a microcefalia publica livro com seus quadros na Espanha

Telas de Marcos Mello dão testemunho do talento que agora busca apoio coletivo na internet para conseguir na capital mineira reconhecimento que já teve no exterior

Junia Oliveira
A dentista Marcides ajuda o filho no processo de criação, que inclui fundo musical para inspirar as pinceladas: 'Tudo é uma questão de amor. Com ele, a caminhada fica bem mais leve' - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A PRESS
“Se tirarem seu chão, aprenda a voar.” A frase, emoldurada em um quadro na parede da sala, parece até uma fórmula para superar barreiras aparentemente intransponíveis. E desse assunto, a dentista Marcides Faria Moraes Mello, de 57 anos, entende bem. Quando o filho Marcos Faria Moraes Mello, hoje com 31, nasceu e recebeu o diagnóstico de microcefalia, ela pensou que a vida lhe tiraria o sorriso e reservaria o mais penoso dos caminhos. Não podia imaginar que, três décadas depois, o rapaz passaria por cima dos prognósticos mais sombrios para se tornar um talentoso pintor. Com livro publicado no exterior sobre seu trabalho, a família organiza agora campanha pela internet para promover em Belo Horizonte a exposição “Marcos e Marcas”, e mostrar ao grande público a versatilidade desse artista de traçados e cores surpreendentes. “Tudo é uma questão de amor. Com ele, a caminhada fica bem mais leve”, ensina Marcides.


Nos tempos em que o zika vírus era algo ainda inimaginável, Marcides teve uma virose assintomática no oitavo mês de gravidez, causada pelo citomegalovírus. Logo depois de nascer, Marcos foi diagnosticado com microcefalia.

“A gente nem ouvia falar nisso. Só existia na literatura”, conta. O prognóstico, relata a mãe, era o pior possível: possibilidade de não andar e falar ou de não conseguir viver plenamente. Aos 3 meses, o bebê começou o tratamento com fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para ajudá-lo a se desenvolver. Aos 3 anos foi para a escola. Apesar do tempo diferenciado em relação às outras crianças, ele andou, falou, sentou... “Superamos obstáculos e aprendemos a cada dia a apreciar o novo, que se traduzia no sentar, no comer sozinho, em chamar de mãe”, conta a dentista.


A sensibilidade para as artes, seja na forma da pintura ou da música, foi percebida desde cedo. A família morou em Portugal durante 15 anos, período no qual, segundo a mãe, o filho mais se desenvolveu. Marcos Aprendeu a tocar violão sozinho observando o irmão, Camilo Moraes Mello, publicitário de 34 anos. Nos instrumentos de cordas, gosta de tocar os sucessos da banda de rock pesado Metallica. Sem falar na percussão. Seja com instrumentos ou apenas batendo na mesa, não desafina nem perde o compasso. Cinemas, shows e teatros fazem parte de sua rotina.


Em 2015, o lado artístico começou a dar sinais de que poderia falar mais alto.

“Passei nove meses procurando apoio em Belo Horizonte para fazer uma exposição dele e não consegui. Nós mesmos bancamos a mostra de um dia, em um espaço privado da capital”, relata a mãe. Foi naquele ano também que o artista espanhol Chencho Zocar, escritor, ilustrador e pintor, amigo de Marcides, pediu a ela que lhe enviasse algumas das obras de Marcos. Se na terra natal foi difícil fazer o trabalho ir a público, do outro lado do oceano o sucesso foi imediato, com um trabalho a quatro mãos. Ano passado, foi publicado na Espanha o livro Unidos pela luz, assinado por Zocar e Marcolino, apelido dele em espanhol. Bilíngue (português-espanhol), o trabalho conta com a reprodução de 21 quadros do rapaz. Cada pintura é precedida de um poema feito pelo escritor europeu a partir das telas. “O Chencho deu profundidade, mas sempre respeitando o trabalho do meu filho.”

Traços de ousadia e versatilidade

Marcos põe o avental e escolhe as cores. Sentado na cadeira, a mesa faz as vezes de cavalete para o começo de mais uma tela. Cada uma delas leva uma manhã inteira e depende da inspiração, do tempo e da disposição do artista.

É ele quem escolhe as cores. A mãe é a assistente perfeita: põe os insumos na mesa, pega os pincéis e liga a música para inspirar a criação. Como bom artista, Marcos usa e abusa das possibilidades. Não tem medo de ousar. Usa pincel, mãos, rolinhos e até colher para pintar. Traços firmes e cores fortes são sua característica marcante, sequência por vezes interrompida pela delicadeza de algumas obras. “Gosto da cor preta e, quando termino, tenho tinta até no cabelo”, relata o pintor, que tem o maior orgulho de dizer, em alto e bom som, qual é a sua profissão.


“Temos vários segmentos invisíveis na sociedade: portadores de necessidades especiais, idosos, refugiados... Todos nós temos capacidades e incapacidades, independentemente de sermos ‘normais’. Nele, só vejo as capacidades. Tenho meus tesouros em casa: meus dois filhos e as obras do Marcos”, afirma Marcides. Como da arte cada um se apropria, as telas do filho geram novas inspirações. Não são raros os momentos em que, a partir de uma delas, a mãe, boa contadora de histórias, se aproveita do que vê para narrar contos e aventuras. O contrário também ocorre. Três telas, guardadas com carinho no quarto da mãe, foram pintadas depois de enredo inventado pelos dois, em que Marcos, um belo príncipe, subia a Avenida Cristóvão Colombo, na Savassi, montado em Fúrias, seu cavalo preto, com a capa vermelha.


Os quadros de Marcos estão à venda. “Quero fazer da arte um ofício para o Marquinhos”, diz a mãe. A campanha de financiamento coletivo é a forma encontrada para viabilizar os projetos do jovem pintor. Além da exposição “Marcos e Marcas”, que contará com 20 quadros inéditos (a segunda geração de telas pintadas por ele), a mobilização tem como objetivo criar um espaço de e-commerce (comércio digital), para que o pintor exponha e continue vendendo suas obras futuramente. Fora da escola especializada desde o ano passado, ele parte agora para novos desafios. “Meu filho passou 25 anos repetindo a letra do nome e colando números. De que isso adianta agora? Quero para ele o melhor. Quero para ele a pedagogia da vida.”

Saiba mais
Microcefalia


É uma malformação congênita, em que o cérebro não se desenvolve de maneira adequada. Nesse caso, os bebês nascem com perímetro cefálico menor do que o normal, que habitualmente é superior a 32 centímetros. Pode ser efeito de uma série de fatores de diferentes origens, como exposição durante a gravidez a substâncias químicas e agentes biológicos (infecciosos), como elementos radioativos, bactérias e vírus. Cerca de 90% dos casos de microcefalia estão associados a deficiência mental, exceto nas de origem familiar, que podem ter desenvolvimento cognitivo normal. O tipo e o nível de gravidade da sequela variam caso a caso. Tratamentos feitos desde os primeiros anos melhoram o desenvolvimento e a qualidade de vida.

SERVIÇO
Marcos e marcas
www.catarse.me/afelicidadedomarquinhos

 

 

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