Transporte clandestino continua em alta mesmo após acidente com 11 mortos

Equipe do EM embarca em ônibus 'genérico'e comprova que coletivos ilegais seguem seduzindo passageiros com um custo baixo que pode acabar em tragédia

Paulo Henrique Lobato - Enviado especial
Veículos do transporte clandestino fazem ponto no Centro de Belo Horizonte, onde passageiros embarcam para viagens longas e de risco - Foto: Marcos Vieira/EM/D.A PRESS
Montes Claros – Os passageiros chegam aos poucos. Primeiro, aparece o rapaz que machucou o pé direito e precisa do apoio de muletas. Depois, vêm pai, mãe e filha adolescente. Em seguida, uma dupla de amigos. Por volta das 20h50 da última quarta-feira, quando um ônibus de viagem estacionou na Rua Tupinambás, no Centro de BH, havia em torno de 20 pessoas prontas para embarcar. Todas dispostas a enfrentar os 430 quilômetros até Montes Claros, no Norte de Minas, em um das centenas de coletivos que desafiam a lei e sustentam o transporte clandestino de passageiros no estado – a exemplo do que se envolveu em desastre com 11 mortes em Salinas, há uma semana.


A equipe de reportagem do Estado de Minas embarcou no mesmo ônibus rumo a Montes Claros, fabricado pela Marcopolo, para conhecer os motivos que fazem com que passageiros se disponham a arriscar a vida em ônibus ilegais. O principal é o preço da passagem. De BH à cidade polo do Norte de Minas, as empresas “genéricas” cobram R$ 60.

Menos da metade do custo da passagem de R$ 143 das companhias legalizadas.

A diferença, justificam as empresas autorizadas, se deve a questões como a carga tributária, o custo periódico com manutenção, despesas trabalhistas etc. “Três passagens neste ônibus saíram a R$ 180. No da rodoviária, seriam
R$ 429. Mais que o dobro”, argumentou o pai que embarcou na companhia da esposa e da filha.

O que parece ser vantajoso para o passageiro, contudo, pode terminar em tragédia, como ocorreu com o ônibus que partiu de São Paulo com destino a Euclides da Cunha (BA) e passou direto em uma curva em Salinas, no Norte de Minas, na última segunda-feira. Onze pessoas morreram, em um desastre cuja violência deixou corpos mutilados e reacendeu a luz de alerta sobre o risco representado pelos “genéricos”, como também são chamados.

IPVA e documento vencidos em 2015

O Marcopolo que partiu às 21h do Centro de BH rumo a Montes Claros rodou sete horas sem ser incomodado pelas autoridades, mostrando o quanto o sistema de fiscalização é falho no país. O ônibus, segundo informações de uma fonte do governo estadual, está impedido de sair da garagem, devido a pendências com multas e tributos. O Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor (IPVA), por exemplo, está em aberto no cadastro do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-MG) desde 2015.

Há duas multas vencidas e pendentes. A primeira, de R$ 184, foi imposta pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A segunda, de R$ 197, foi aplicada pelo Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DEER-MG). Além das outras ameaças inerentes ao transporte clandestino, os passageiros correram o risco de ter a viagem interrompida se fossem parados pela fiscalização.

Como o motorista não foi incomodado, a primeira parada, pouco depois de Ribeirão das Neves, ainda na Região Metropolitana de BH, ocorreu por motivo inusitado, se considerada uma viagem pelo sistema legalizado: o coletivo precisava abastecer. A conta, claro, foi paga com o dinheiro que os passageiros entregaram ao cobrador no momento da partida.

Apesar do nítido improviso, o atraso não incomodou algumas pessoas. “Não dá para pagar os ônibus convencionais. Ganho pouco e a passagem é cara”, afirmou um rapaz, quando o coletivo se aproximava de Sete Lagoas.
A cidade, a 60 quilômetros da capital, abriga um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Às 22h23, o ônibus passou em frente à unidade policial e sem receber ordem de parada.

Fiscalização da Polícia Rodoviária Federal e de órgãos como o DEER não é suficiente para barrar piratas - Foto: Beto Novaes/EM/D.A PRESS
Clandestino não se esconde em desvios

Protegido pela escuridão da noite, o Marcopolo não precisou recorrer a caminhos alternativos para despistar a fiscalização. Da capital, seguiu pela BR-040, que passa pela entrada de Sete Lagoas, e continuou até o destino pela perigosa BR-135, de pistas simples e sem divisão física entre as mãos de direção. Parou para o jantar do motorista, por volta das 22h45, em Paraopeba. Adiante, aos 30 minutos do dia seguinte, fez outra parada. Desta vez em um posto de combustíveis em Corinto.

A continuação da viagem não foi fácil para uma dupla de amigos que encarou o genérico. Um deles reclamou do frio. O outro, do tanto que o coletivo “chacoalhava”. A adolescente e os pais aparentemente não se importaram. Estavam mais preocupados em chegar à rodoviária de Montes Claros.
O rapaz que precisava do amparo das muletas quis mesmo foi dormir. Precisou ser acordado no fim do trajeto pelo cobrador. “Obrigado, amigo”, agradeceu.

Mas nem todos os empregados dos genéricos recebem elogio dos passageiros que fazem a rota BH-Montes Claros. Em maio passado, a Polícia Rodoviária Federal perseguiu um coletivo clandestino cujo motorista ignorou ordem de parada. Alcançado cinco quilômetros depois, o condutor foi detido. Para surpresa dos 21 passageiros, havia um mandado de prisão aberto contra ele.

Histórias como essas são de conhecimento dos órgãos de fiscalização. Mas eles argumentam que há déficit de servidores para tentar frear a farra dos genéricos. “O transporte clandestino tem muita tranquilidade para agir. Raramente é fiscalizado. E, quando é, a punição é branda. A exploração ilícita afeta o interesse público. Milhares de usuários são expostos a uma atividade precária, com consequências fatais, além da sonegação fiscal e desequilíbrio do sistema de transporte público”, alerta Zaira Silveira, advogada do Sindicato das Empresas do Transporte de Passageiros de Minas Gerais (Sindpas).

Segundo ela, o Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem (DEER-MG), por exemplo, contava com 159 fiscais para atuar nas 853 cidades mineiras em agosto de 2016. Atualmente, admitiu o DEER, são 150 agentes. Mas o órgão conta com apoio da Polícia Militar: mais de 650 policiais designados e treinados.

Um dos grandes obstáculos à atuação desse efetivo, porém, é a enxurrada de ações judiciais ajuizadas pelas empresas genéricas. “Desde 2011, o DEER/MG recebeu notificações relativas a cerca de 1,9 mil liminares expedidas pelo Poder Judiciário em Minas Gerais, um número que oscila em função de recursos e apelações. O departamento sustenta recorrer contra todas essas decisões judiciais, mas enquanto vigoram as liminares, os clandestinos estão livres para circular e colocar em risco a vida de passageiros.

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