A memória prodigiosa, as lembranças bem guardadas e o sorriso de esperança são aliados vitais da aposentada Dalma Martins em defesa de um tesouro de Minas, estado que completa, este mês, 14 anos da campanha para resgate de bens desaparecidos de igrejas, capelas e museus e está em busca de 730 peças sacras dos acervos históricos, conforme último levantamento do Ministério Público (MPMG). Aos 93 anos, a moradora de Santa Luzia, na Grande BH, conta os dias para ver de volta, no altar do santuário da cidade, a imagem de Santana Mestra, peça de 1740 em poder de um colecionador residente no Rio de Janeiro (RJ) e alvo de ação ajuizada pelo MPMG, em 2003, via Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC). “Vou ficar muito feliz, quando a Santana retornar para casa. Não morro sem ver isso acontecer”, anima-se a ex-tabeliã do cartório de Registro Civil ao admirar, no catálogo de um leilão realizado na capital fluminense, na época, a foto do objeto de devoção arrematado no pregão.
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Decisão recente anima os defensores do patrimônio e moradores de cidades à espera de suas joias barrocas. A Justiça determinou que o busto-relicário de São Boaventura, peça esculpida por Aleijadinho para a Igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, na Região Central, seja reintegrado ao acervo original sob guarda do Museu Aleijadinho e da Arquidiocese de Mariana. Além disso, a obra foi reconhecida como integrante do patrimônio de Ouro Preto. A ação do MPMG tramitava desde 2011.
Se a campanha de resgate se mantém ativa, um gargalo está na devolução das peças sacras às instituições de origem (igrejas, museus etc.), pois nem sempre é possível a identificação pela falta de dados ou relatos de pessoas das comunidades que conheceram os acervos vendidos, furtados, roubados ou simplesmente sumidos do mapa. Para suprir esta lacuna, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) vem atualizando o inventário de bens tombados. No ano passado, foram concluídas 908 fichas de nove igrejas, diz a presidente do órgão estadual, Michele Arroyo. Ela adianta que o programa Minas para Sempre, para colocação de alarmes, está sendo reformulado e reafirma a necessidade de colaboração dos moradores na prevenção.
CONFIANÇA Considerada a primeira imagem sacra de Santa Luzia, dos tempos ainda do Arraial de José Corrêa, onde a cidade tricentenária nasceu, a Santana Mestra – formada por um conjunto de três peças separadas: Santa Ana, mãe de Nossa Senhora, a menina Maria e a cadeira também em cedro policromado – traz boas recordações a Dalma Martins, moradora do Centro Histórico. Nos tempos de criança, ela participava das lições de catecismo dadas pela integrante das Filhas de Maria e zeladora da Matriz de Santa Luzia, Augusta Dolabela (1904-1995), guardiã do patrimônio religioso. Os ensinamentos eram ministrados numa capela, já demolida, que ficava ao lado da cadeia, na Rua Floriano Peixoto, para a qual foram transferidas as relíquias do primitivo templo destruído por uma enchente, segundo a tradição oral.
“Na hora do catecismo, falávamos: ‘Vamos lá na Igreja de Santana!’ Do lado da imagem, ficava um crucifixo muito bonito”, diz Dalma.
Com altura de 90cm e portando resplendor e coroa de prata, a Santana Mestra fazia parte, junto com outras 51 peças, da coleção de um mineiro, já falecido, que morava no Rio de Janeiro. O catálogo de divulgação da galeria onde ocorreu o leilão descreveu a obra como “erudita” e proveniente do “interior de Minas Gerais, de uma velha igreja que estava sendo demolida”.
A promotora de Justiça Giselle Ribeiro de Oliveira explica que a peça passa atualmente por uma segunda perícia em BH, em local não divulgado – a primeira foi entre 2004 e 2005, na sede do (Iepha-MG). “Acreditamos numa solução consensual para resolver a questão. A comunidade luziense vai ficar muito satisfeita ”, diz a coordenadora da CPPC. “Quando a comunidade perde um bem, perde também parte da sua identidade”, lembra.
Também confiante, o titular da Paróquia de Santa Luzia, padre Danil Marcelo dos Santos, já pensou no lugar para entronizar a peça. Por ser considerada a primeira imagem da cidade, ela ficará no altar-mor, na parte de baixo do trono da padroeira Santa Luzia. O Santuário de Santa Luzia é considerado seguro e o padre adianta que está aumentando o número de equipamentos para impedir arrombamentos e invasões.
Outras com pendência judicial: 158 peças apreendidas pela Polícia Federal em 1998 e 2003 e guardadas no Museu Mineiro, em BH; 38 peças apreendidas, em antiquários, que também estão no Museu Mineiro, aguardando julgamento da apelação – algumas foram devolvidas para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da Bahia