Jornal Estado de Minas

Resgate de pinturas originais reconstrói memória artística de Minas

O restaurador uruguaio Andrés Tasende Sfei mostra os traços descobertos: 'Interpretação artística do mármore' - Foto: Leandro Couri/EM/DA Press

Uma parte centenária da história de Belo Horizonte, embora invisível para a maioria da população, ganha uma intervenção esmerada, que combina técnica, trabalho artístico e muita dedicação. Trata-se do restauro da pintura parietal – feita diretamente nas paredes, sobre o reboco fresco – do Colégio Sagrado Coração de Jesus, no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul, que traz de volta as formas originais, entre elas uma pintura em 3D, na qual sombra, relevo e profundidade aguçam a curiosidade e encantam os olhos, em um clima de terceira dimensão. Encarregado do serviço, iniciado no ano passado, o restaurador uruguaio Andrés Tasende Sfeir explica que o mural, “com uma interpretação artística do mármore”, ocupa uma área de cerca de 300 metros quadrados e não tem autoria conhecida. “Tudo indica que foi feito por um italiano e seus aprendizes, no início do século passado”, afirma. Em Minas, outros tesouros escondidos sob camadas de tinta (veja quadro), em capelas e igrejas, estão sendo redescobertos para valorizar ainda mais o patrimônio cultural.

As pinturas acompanham os corredores do colégio, fundado em 1911 pelas Missionárias Servas do Espírito Santo e tombado pelo município. Ao longo dos murais, Andrés vai mostrando os trechos já concluídos, alguns cobertos como forma de proteção – pois a escola se encontra em obras – e outros ainda necessitados de restauro. A ação do tempo, repinturas, umidade e uso constante em uma unidade de ensino com 800 alunos, além de ações inadequadas, deixaram marcas no mural, como desprendimento da pintura, perdas e deformações.

Para Andrés, responsável também pelo restauro dos quadros da via-crúcis e imagens da capela do Sagrado Coração de Jesus, há dois anos, o fundamental em uma restauração está no resgate das características originais. “Não temos aqui só uma questão estética, para ficar bonitinho”, afirma, explicando que, antes de começar o trabalho, observou toda a extensão das pinturas, verificou os pontos de umidade para, então, decidir o caminho a seguir.
“Deu para ver que o mural do andar térreo foi obra de um pintor e, mais adiante, dos aprendizes. Além disso, o material empregado, na época, era uma pátina, um pigmento ralo, diferente de tinta.”

SENSIBILIDADE Em alguns pontos houve perda total da pintura, o que desafiou Andrés e a assistente de restauração Valessa Costa Soares, estudante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com participação em projetos de relevância, como o teatro de Juiz de Fora, na Zona da Mata, e a Igreja São José, em BH. Na tarde de ontem, diante de um ponto no mural que precisou ser reconstituído, ele esclareceu: “Ao contrário do que todos pensam, restauração não é trabalho artístico, mas puramente técnico. Assim, precisamos desenvolver a sensibilidade. Mesmo sendo desenhista e pintor, tive que unir técnica e arte para fazer as reconstituições, sem comprometer a leitura total”.

- Foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA Press - 10/5/17Acostumado a trabalhar em silêncio, ouvindo música, o uruguaio custou a se acostumar com o burburinho do colégio, agora no período de férias. “Fico muito concentrado. É a primeira vez que trabalho em uma escola.
Na hora em que toca a campainha para o recreio, eu sinto ainda mais a diferença”, revela o restaurador, que mora há oito anos na capital e tem uma história bem particular com as Gerais. “Vim para Minas a fim de conhecer a obra de Aleijadinho (Antonio Francisco Lisboa – 1737/1814). Minha tia, a escultora Adela Neffa, esteve aqui em 1957, participando de um congresso de belas-artes e visitou Ouro Preto para ver de perto a obra do artista.”

A conclusão do serviço não tem data prevista e Andrés adianta que a etapa final inclui aplicação de duas ou três camadas de verniz com filtro solar, iniciativa eficaz para proteger da incidência da luz do dia. Para garantir a preservação, durante o período letivo o trabalho de restauro é acompanhado de palestras em sala de aula para que as turmas conheçam os métodos e a importância de conservar obras de arte.

 

Riqueza (des)coberta

 

- Foto: Beto Novaes/EM/DA Press - 30/5/171) Museu Mineiro, em Belo Horizonte
Achado no Museu Mineiro, no Circuito Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, entusiasma a direção da instituição, encanta restauradores e se torna mais um atrativo para os visitantes que chegam ao casarão, erguido na época de construção da capital. Em maio de 2017, bem na entrada do equipamento cultural da Avenida João Pinheiro, no Circuito Cultural Praça da Liberdade, foi encontrado sob sete camadas de tinta, a última delas na cor preta, um conjunto de pinturais parietais – feitas diretamente nas paredes, sobre o reboco –, que podem ser de autoria do mesmo artista que trabalhou no Palácio da Liberdade, o alemão Frederico Steckel (1834-1921).

- Foto: Samuel Consentino/Prefeitura de Mariana/Divulgação - 19/5/172) Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Ouro Preto
O restauro da Igreja Nossa Senhora das Dores, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, na Região Central, traz de volta pinturas escondidas por décadas sob várias camadas de tinta no forro e nas paredes – em alguns pontos, até 10 demãos. A maior descoberta está logo na entrada, no forro do átrio, onde a equipe encarregada do serviço encontrou guirlandas em policromia tampadas pelo branco, que deixava à mostra apenas a cena do calvário, correspondente a 10% do trabalho original. Reivindicada pela comunidade e custeada integralmente com recursos do Fundo Municipal do Patrimônio (Funpatri) no valor de R$ 970 mil, a obra deverá ser concluída e entregue em outubro.



- Foto: Túlio Santos/EM/DA Press - 21/7/143) Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, em Mariana
Em restauro desde 2015, a Matriz Nossa Senhora da Conceição, no distrito de Cachoeira do Brumado, em Mariana, na Região Central, também tem a beleza revelada. Durante a obra, foram descobertas várias riquezas da policromia original da igreja, como os elementos florais nos altares, além de pinturas em estilo chinês encontradas no forro do retábulo. Com a remoção das camadas de tinta, foi possível contemplar também no retábulo, dedicado a Nossa Senhora do Rosário, um rosário entalhado na mesa e a imagem de um sagrado coração de Jesus. E mais: ao ser feita a limpeza sob o retábulo-mor, foram encontrados fragmentos de elementos de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição.

4) Capela do Oratório da Igreja São José, em Belo Horizonte
Construída antes mesmo da centenária Igreja São José, à qual está ligada, a Capela do Oratório, no Centro de BH, teve escondidas em suas paredes, durante décadas, pinturas que ressurgiram em cores, formas e palavras em latim. Entre os achados, em 2014, foram destaque a lâmpada do Santíssimo Sacramento, que ficou esquecida no porão da igreja durante muito tempo e recebeu um banho de níquel. A Igreja São José é destaque importante nessa história de pinturas reveladas, pois, depois das obras no seu interior, perdeu a cor bege e ganhou as cores da época da construção, a partir dos projetos originais.

Pinceladas que escondem joias


Camadas e camadas de tinta, peças sacras desfiguradas, pinturas desaparecidas e intervenções desastrosas em igrejas e prédios públicos. Ao longo dos tempos, o patrimônio cultural de Minas sofreu maus-tratos, e a redescoberta de trabalhos artísticos, na capital e no interior, evidencia esse tesouro que ficou escondido. Com mais de 30 anos no setor de restauração de bens culturais e atualmente à frente da Igreja São José, no Centro de Belo Horizonte, a especialista Maria Regina Ramos, do Grupo Oficina de Restauro, tem algumas explicações para o caso.

“Muitas vezes, as pessoas queriam dar um caráter de ‘novo, limpinho’ ao ambiente ou às peças sacras, e então mandavam passar tinta.

Em alguns casos, a camada pôde ser removida, como está ocorrendo em várias igrejas de Minas, mas há outras situações. Em Belo Horizonte, por exemplo, paredes com pinturas de prédios públicos foram raspadas, impedindo completamente a preservação”, diz Maria Regina.

Como recado para religiosos, zeladores, administradores paroquiais e outras pessoas que cuidam do patrimônio, a restauradora recomenda jamais usar água para limpar altares, imagens e outros objetos de relevância histórica. “Já houve casos em que as pessoas lavavam altares de ouro com mangueira. Isso não pode de jeito nenhum. Em caso de preservar um bem cultural, o melhor mesmo é chamar um especialista. Mas a conscientização sobre a conservação mudou nos últimos anos, o que é saudável”, ressalta.

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