Não é de hoje que o professor Ivo Porto de Menezes sobe a Serra da Piedade, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pelas contas dele, mais de meio século, desde a época do frei dominicano Rosário Jofylly (1913-2000) à frente do santuário dedicado à padroeira dos mineiros, Nossa Senhora da Piedade. Arquiteto, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em arte sacra, além de apaixonado pelo lugar, o belo-horizontino de 89 anos – “com muito orgulho”, ressalta – concluiu uma pesquisa com descoberta surpreendente, que valoriza o patrimônio brasileiro, enaltece ainda mais a figura de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e celebra os 250 anos de peregrinação à ermida no topo do maciço. Segundo Ivo, o retábulo do altar-mor da construção é também de autoria de Aleijadinho, uma revelação totalmente inédita. O resultado da pesquisa estará num livro, do qual é agora publicado avulso o capítulo sobre o assunto: Ermida da Senhora da Piedade – Retábulo e imagem.
Destacando o caráter inovador na execução do retábulo em estilo rococó, o professor Ivo eleva o tom ao falar de Aleijadinho. “O mais sensível artista que tivemos na arquitetura e na arte sacra. Estamos sempre descobrindo algo bonito e novo na obra dele. Os artistas têm que ter esta sensibilidade”, define. A partir de novembro e durante 2018, serão lembrados os 280 anos de nascimento do homem natural de Ouro Preto que fez história com sua arte. Oficialmente, Aleijadinho nasceu em 1738, mas há polêmica a respeito, pois estudo recente aponta 1737 e há quem fale em 1730.
Na semana passada, Ivo subiu mais uma vez a serra e contou, com entusiasmo, lucidez e memória impressionantes para nomes, números e datas, que o recém-concluído livro A Senhora da Piedade e a serra sacramenta o compromisso firmado com o reitor substituto de frei Rosário, o missionário italiano Virgílio Resi (1951-2002). “Conversava muito com ele sobre a ermida. Estou há mais de 20 anos nesta pesquisa e sempre me perguntei: se Aleijadinho fez a imagem de Nossa Senhora da Piedade, por que não o retábulo?”. Para suas indagações, teve o respaldo técnico dos trabalhos da professora Lygia Martins Costa, ex-funcionária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e considerada pioneira da museologia brasileira, apoiada pelo arquiteto Lúcio Costa. Não foram encontrados documentos sobre a obra e nem mesmo sobre os registros confirmando a autoria da imagem da padroeira. A atribuição foi feita por estudiosos, entre eles o professor Edmundo Fontenelle, autor da publicação O Aleijadinho na Serra da Piedade (1970).
As marcas do “mestre do Barroco” estão em vários pontos do retábulo – é bom lembrar que essa palavra, para a maioria da população, tem o mesmo significado do altar que abriga a imagem. Com todo o respeito nesse espaço sagrado, o professor e integrante da comissão de bens culturais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Leste 2 explica que Aleijadinho mudou a “organização” na peça originalmente esculpida por volta de 1770 em cedro, sem policromia. “Antes, os riscos dos retábulos não contemplavam a parte inferior. Era da mesa do altar para cima. O artista modificou isso e prolongou as colunas laterais até o último degrau da escada que leva ao altar, denominada supedâneo”, diz Ivo, um dos pioneiros do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG).
Aleijadinho usou a mesma composição no retábulo do altar-mor da Capela de São José, em Ouro Preto, embora não tenha sido o escultor; da Igreja de São Francisco, de Ouro Preto; e das igrejas das fazendas da Jaguara, cuja obra está hoje na matriz de Nova Lima, na Grande BH, e Serra Negra, no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. “Essa tendência especial ocorria nas Minas Gerais graças ao genial Antonio Francisco Lisboa”, observa o especialista, lembrando que em 1977 a professora Lygia apresentou um trabalho em que mostrou que, ao atuar como arquiteto, Aleijadinho “concebe uma estrutura partindo do solo e projetando-se pelos pés-direitos até eclodir no coroamento’”.
COMPOSIÇÃO Autor dos livros Antonio Francisco Lisboa, lançado em 2014, ano de homenagens a Aleijadinho pelo bicentenário de sua morte, e Bens culturais da Igreja (2006), Ivo Porto de Menezes chama a atenção para um detalhe importante na pesquisa. Na organização do retábulo, o artista o dividiu em três partes horizontais (embasamento, corpo e coroamento), sendo que, nas colunas laterais, marcou bem a parte do corpo com ornamentos que lembram coroas. “Com isso, houve maior valorização do sacrário”, afirma.
No capítulo Ermida da Senhora da Piedade – Retábulo e imagem, o professor registrou que “a análise do retábulo nos mostra claramente a estrutura articulada, dinâmica e fluente” e que “a inovação estrutural dos retábulos setecentistas de Aleijadinho nasceu e morreu com ele”. E bate o martelo: “Somos levados a atribuir composição e execução ao mestre Antonio Francisco Lisboa pela presença desta estruturação arquitetônica e amarração de toda a composição, seja pela localização do sacrário, agora reorganizado e valorizado, seja pela integração do próprio altar na composição geral do retábulo. A observação do conjunto faz jus à atribuição igualmente pelo desenvolvimento da decoração”.
RIQUEZA As conclusões do professor Ivo ganham aplausos. “O trabalho de pesquisa profunda e complexa, com indicações de que o mestre Aleijadinho é o autor do retábulo que acolhe a imagem de Nossa Senhora da Piedade, enriquece ainda mais a história tricentenária de fé e religiosidade de Minas. Um presente valioso para todo o povo mineiro, neste especial momento em que celebramos os 250 anos de peregrinação na fé ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade”, diz o arcebispo metropolitano de BH, dom Walmor Oliveira de Azevedo.
Autora de vários livros sobre o Barroco e o rococó, entre eles Arte sacra no Brasil colonial, a professora aposentada da UFMG Adalgisa Arantes Campos considera Ivo Porto de Menezes um grande estudioso, que aprecia muito a pesquisa arquivística, “o que é um grande diferencial”, e já esteve mergulhado em acervos documentais em Portugal. Por não se ater somente à bibliografia, o professor traz uma conclusão pertinente, “pois coteja a visualidade do retábulo com a pesquisa arquivística”.
Destacando a passagem de Ivo como diretor do Arquivo Público Mineiro, Adalgisa pondera: “Não estou falando que o retábulo é de Aleijadinho, mas é crível que seja.” E arremata citando a especialista em Barroco Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, de que “na ausência do documento, predomina a análise visual”.
Autor do livro Aleijadinho revelado – Estudo histórico sobre Antonio Francisco Lisboa e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda ressalta que a notícia da descoberta do professor Ivo chega em boa hora, nos 250 anos das peregrinações na Serra da Piedade e 280 anos do nascimento de Aleijadinho. “Ainda são muitas as lacunas e dúvidas sobre a produção artística do mestre, o que confere especial relevância a todos os estudos técnicos que possam contribuir para a descoberta da verdade histórica sobre o maior artista mineiro de todos os tempos”.
SAIBA MAIS
História nas alturas
A história do Santuário de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas, em Caeté, começa no século 18, com o relato de um milagre: a Virgem Maria teria aparecido para duas jovens no alto da Serra da Piedade. A partir desse dia, o fato se espalha rapidamente por toda a região e muita gente chega ao topo do maciço para rezar. O episódio toca o coração do português Antônio da Silva Bracarena, então na colônia para ganhar dinheiro. Mas ele se converte e decide dedicar sua vida à construção de uma capela no lugar onde ocorrera o milagre. O singelo templo dedicado a Nossa Senhora da Piedade começa a ser erguido em 1767 e, mais tarde, ganha a imagem esculpida por um jovem de Ouro Preto, depois reconhecido como mestre do Barroco mineiro – Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Marcas do mestre
Veja alguns traços de Aleijadinho no retábulo do altar-mor da ermida de Nossa Senhora da Piedade, na Serra da Piedade
1) As colunas laterais vão até o último degrau da escada que leva ao altar, o chamado supedâneo. Antes, iam até a mesa do altar
2) As colunas laterais são divididas e marcadas por um ornamento, como um coroamento
3) A organização do retábulo valoriza o sacrário (onde ficam as hóstias)
4) A organização proposta por Aleijadinho, que divide o retábulo em três partes horizontais, permite a colocação de dois nichos, nos quais estão hoje São José de Botas e Santa Bárbara
Destacando o caráter inovador na execução do retábulo em estilo rococó, o professor Ivo eleva o tom ao falar de Aleijadinho. “O mais sensível artista que tivemos na arquitetura e na arte sacra. Estamos sempre descobrindo algo bonito e novo na obra dele. Os artistas têm que ter esta sensibilidade”, define. A partir de novembro e durante 2018, serão lembrados os 280 anos de nascimento do homem natural de Ouro Preto que fez história com sua arte. Oficialmente, Aleijadinho nasceu em 1738, mas há polêmica a respeito, pois estudo recente aponta 1737 e há quem fale em 1730.
Na semana passada, Ivo subiu mais uma vez a serra e contou, com entusiasmo, lucidez e memória impressionantes para nomes, números e datas, que o recém-concluído livro A Senhora da Piedade e a serra sacramenta o compromisso firmado com o reitor substituto de frei Rosário, o missionário italiano Virgílio Resi (1951-2002). “Conversava muito com ele sobre a ermida. Estou há mais de 20 anos nesta pesquisa e sempre me perguntei: se Aleijadinho fez a imagem de Nossa Senhora da Piedade, por que não o retábulo?”. Para suas indagações, teve o respaldo técnico dos trabalhos da professora Lygia Martins Costa, ex-funcionária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e considerada pioneira da museologia brasileira, apoiada pelo arquiteto Lúcio Costa. Não foram encontrados documentos sobre a obra e nem mesmo sobre os registros confirmando a autoria da imagem da padroeira. A atribuição foi feita por estudiosos, entre eles o professor Edmundo Fontenelle, autor da publicação O Aleijadinho na Serra da Piedade (1970).
As marcas do “mestre do Barroco” estão em vários pontos do retábulo – é bom lembrar que essa palavra, para a maioria da população, tem o mesmo significado do altar que abriga a imagem. Com todo o respeito nesse espaço sagrado, o professor e integrante da comissão de bens culturais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Leste 2 explica que Aleijadinho mudou a “organização” na peça originalmente esculpida por volta de 1770 em cedro, sem policromia. “Antes, os riscos dos retábulos não contemplavam a parte inferior. Era da mesa do altar para cima. O artista modificou isso e prolongou as colunas laterais até o último degrau da escada que leva ao altar, denominada supedâneo”, diz Ivo, um dos pioneiros do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG).
Aleijadinho usou a mesma composição no retábulo do altar-mor da Capela de São José, em Ouro Preto, embora não tenha sido o escultor; da Igreja de São Francisco, de Ouro Preto; e das igrejas das fazendas da Jaguara, cuja obra está hoje na matriz de Nova Lima, na Grande BH, e Serra Negra, no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. “Essa tendência especial ocorria nas Minas Gerais graças ao genial Antonio Francisco Lisboa”, observa o especialista, lembrando que em 1977 a professora Lygia apresentou um trabalho em que mostrou que, ao atuar como arquiteto, Aleijadinho “concebe uma estrutura partindo do solo e projetando-se pelos pés-direitos até eclodir no coroamento’”.
COMPOSIÇÃO Autor dos livros Antonio Francisco Lisboa, lançado em 2014, ano de homenagens a Aleijadinho pelo bicentenário de sua morte, e Bens culturais da Igreja (2006), Ivo Porto de Menezes chama a atenção para um detalhe importante na pesquisa. Na organização do retábulo, o artista o dividiu em três partes horizontais (embasamento, corpo e coroamento), sendo que, nas colunas laterais, marcou bem a parte do corpo com ornamentos que lembram coroas. “Com isso, houve maior valorização do sacrário”, afirma.
No capítulo Ermida da Senhora da Piedade – Retábulo e imagem, o professor registrou que “a análise do retábulo nos mostra claramente a estrutura articulada, dinâmica e fluente” e que “a inovação estrutural dos retábulos setecentistas de Aleijadinho nasceu e morreu com ele”. E bate o martelo: “Somos levados a atribuir composição e execução ao mestre Antonio Francisco Lisboa pela presença desta estruturação arquitetônica e amarração de toda a composição, seja pela localização do sacrário, agora reorganizado e valorizado, seja pela integração do próprio altar na composição geral do retábulo. A observação do conjunto faz jus à atribuição igualmente pelo desenvolvimento da decoração”.
RIQUEZA As conclusões do professor Ivo ganham aplausos. “O trabalho de pesquisa profunda e complexa, com indicações de que o mestre Aleijadinho é o autor do retábulo que acolhe a imagem de Nossa Senhora da Piedade, enriquece ainda mais a história tricentenária de fé e religiosidade de Minas. Um presente valioso para todo o povo mineiro, neste especial momento em que celebramos os 250 anos de peregrinação na fé ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade”, diz o arcebispo metropolitano de BH, dom Walmor Oliveira de Azevedo.
Autora de vários livros sobre o Barroco e o rococó, entre eles Arte sacra no Brasil colonial, a professora aposentada da UFMG Adalgisa Arantes Campos considera Ivo Porto de Menezes um grande estudioso, que aprecia muito a pesquisa arquivística, “o que é um grande diferencial”, e já esteve mergulhado em acervos documentais em Portugal. Por não se ater somente à bibliografia, o professor traz uma conclusão pertinente, “pois coteja a visualidade do retábulo com a pesquisa arquivística”.
Destacando a passagem de Ivo como diretor do Arquivo Público Mineiro, Adalgisa pondera: “Não estou falando que o retábulo é de Aleijadinho, mas é crível que seja.” E arremata citando a especialista em Barroco Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, de que “na ausência do documento, predomina a análise visual”.
Autor do livro Aleijadinho revelado – Estudo histórico sobre Antonio Francisco Lisboa e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda ressalta que a notícia da descoberta do professor Ivo chega em boa hora, nos 250 anos das peregrinações na Serra da Piedade e 280 anos do nascimento de Aleijadinho. “Ainda são muitas as lacunas e dúvidas sobre a produção artística do mestre, o que confere especial relevância a todos os estudos técnicos que possam contribuir para a descoberta da verdade histórica sobre o maior artista mineiro de todos os tempos”.
SAIBA MAIS
História nas alturas
A história do Santuário de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas, em Caeté, começa no século 18, com o relato de um milagre: a Virgem Maria teria aparecido para duas jovens no alto da Serra da Piedade. A partir desse dia, o fato se espalha rapidamente por toda a região e muita gente chega ao topo do maciço para rezar. O episódio toca o coração do português Antônio da Silva Bracarena, então na colônia para ganhar dinheiro. Mas ele se converte e decide dedicar sua vida à construção de uma capela no lugar onde ocorrera o milagre. O singelo templo dedicado a Nossa Senhora da Piedade começa a ser erguido em 1767 e, mais tarde, ganha a imagem esculpida por um jovem de Ouro Preto, depois reconhecido como mestre do Barroco mineiro – Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Marcas do mestre
Veja alguns traços de Aleijadinho no retábulo do altar-mor da ermida de Nossa Senhora da Piedade, na Serra da Piedade
1) As colunas laterais vão até o último degrau da escada que leva ao altar, o chamado supedâneo. Antes, iam até a mesa do altar
2) As colunas laterais são divididas e marcadas por um ornamento, como um coroamento
3) A organização do retábulo valoriza o sacrário (onde ficam as hóstias)
4) A organização proposta por Aleijadinho, que divide o retábulo em três partes horizontais, permite a colocação de dois nichos, nos quais estão hoje São José de Botas e Santa Bárbara