Um nome que não condiz com o dono dele. Batizado de Maria Dorothea de Araujo Santos, Dorí, de 52 anos, começou um processo de retificação de seu nome social em setembro do ano passado com o apoio de um centro de exercício jurídico. Desde pequeno, na escola onde estudava, Dorí sempre foi do time dos meninos: cabelos curtos, calças largas e blusas compridas. Tudo que escondesse suas curvas. Preferia o inverno para se vestir com os moletons, já que nas aulas de educação física as meninas eram obrigadas a usar collant – uma peça justa ao corpo, que marcava detalhes. “Quando eu tinha que usar o collant era a morte. Tinha que correr, jogar vôlei, handebol e sempre na equipe feminina. Tive que me fechar para sofrer menos. Desde criança nunca me vi como mulher, mesmo nascendo mulher. Meu gênero sempre foi masculino. Não mudei, sempre fui deste jeito”, disse Dorí.
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Vários dos dilemas retratados na novela se repetem na vida real. Diferentemente de muitos transexuais que são expulsos de casa e que são discriminados pela família, Dori sempre teve o apoio da mãe. “Ela me apoia de uma forma que você nem acredita. Desde o início ela conversa comigo. Quando falei para ela que eu tiraria os seios, ela disse: ‘Ninguém nunca viu que você tem seios mesmo. Você sempre foi assim.’ Minhas irmãs já tiveram dificuldade. Mas, não posso exigir das pessoas que entendam que sou o Dorí. Mas elas me dizem que não conseguem me chamar com o pronome masculino. A mudança da família não me incomoda tanto assim”, afirmou.
Na contramão da população trans, que tem muita dificuldade em conseguir um emprego formal, Dorí se considera um cara de sorte. Quando buscou um trabalho fora de um escritório administrativo, se encontrou em bares e boates LGBT%2b. Em um desses estabelecimentos, conheceu Cristiane Korossy, de 35, sua companheira. Em 2004, ela estava de casamento marcado e, quando o conheceu, não o identificou como mulher. O noivado foi cancelado e romance com Dorí engatou e, após 3 meses, já assumiram uma união estável, pois aguardam a nova de identidade de Dori para formalizar o casamento e ter o nome dos doi em uma certidão. “Quando nos unimos, éramos considerados homossexuais”, contou Cristiane. “Se não fosse ela, eu não seria eu”, declarou Dori, com os olhos marejados. Ele conta que foi ela a grande responsável por todo o processo de transição, desde a retirada dos seios, as primeiras dosagens de hormônio, até o pontapé inicial da mudança de nome. “Eu não seria quem sou hoje.”
Nas últimas semanas da novela, Ivan deu a oportunidade para que a mãe o rebatizasse. Porém, enfrentou mais um episódio de conflito com os pais, que não aceitam a nova imagem que ele representa. Assim, com a ajuda de uma amiga, o nome Ivan foi escolhido, porque simbolizava o desejo da mãe. No entanto, o personagem ainda não conseguiu a retificação do nome social para retirar os novos documentos. Da ficção para a realidade, Dori também aguarda a nova identidade. *Estagiário sob supervisão do editor Roney Garcia
Bê-á-bá da identidade de gênero
Cisgênero – Toda pessoa que se identifica com as características do gênero designado a ela no nascimento. Em termos de orientação sexual podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais.
Transgênero – Toda pessoa que não se identifica com as características do gênero designado a ela no nascimento. Nesse caso, podemos dividir entre o grupo denominado “dimensão identitária” (travesti, mulher transexual e homem transexual) e “dimensão funcional” (crossdressers, dragqueens, dragkings e transformistas). Em termos de orientação sexual, também podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais.
Identidade não binária ou Genderqueer – Termo “guarda-chuva” para identidades de gênero que não sejam exclusivamente homem nem mulher, estando, portanto, fora do binarismo de gênero masculino e feminino e da cisnormatividade.
Constrangimento e espera por decisão
No ano passado, Dorí Araujo entrou com um processo de mudança do nome social, com o apoio do Centro de Exercício Jurídico da Newton Paiva. Mas ainda vem passando por constrangimentos por oficialmente ainda se chamar Maria Dorothea. “Há pouco tempo, fizeram um crachá no trabalho com meu nome civil. Falei: ‘Não vou usar esse crachá, vai me constranger horrores. Fiquei chorando três horas no balcão com a situação’”, contou Dorí. Dias depois, seu crachá foi reformulado e agora, na frente, seu nome estampa a identificação escolhida. Dorí se orgulha ao ser chamado pelo pronome masculino: “No bar onde trabalho, quando me chamam de ‘ele’, ‘ele’, ‘ele’, isso soa como se fosse música ao meu ouvido.” Agora, o que Dorí deseja com a formalização do seu nome social vai além de um papel. Ele quer evitar constrangimentos de qualquer tipo e ser visto não como um homem transexual mas como um homem comum. “Só quero ser mais um na multidão. Mais um homem”.
A retificação consiste em trocar o nome e o sexo biológico de documentos oficiais pela identificação e gênero escolhidos. A professora mestre em Direito e Instituições Políticas Tatiana Maria Oliveira Prates Motta foi a que se prontificou a ajudar Dorí a mudar os documentos. “O procedimento proposto foi uma ação de retificação de registro civil. No que diz respeito aos transgêneros e, em especial, ao nosso constituinte, a ação visa à efetivação de direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal”, afirma a advogada.
Dalcira Ferrão, psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais e militante LGBT , esclarece sobre o relatório psicológico solicitado pelo juiz para a realização da retificação. “A proposta não é, de forma alguma, atestar a transexualidade de alguém nem muito menos diagnosticar ou patologizar a identidade travesti e trans e sim apresentar uma análise psicossocial da história, da trajetória da pessoa.” Ainda de acordo com ela, o relatório serve para apontar relações sociais e constrangimento que a utilização do nome civil pode ocasionar aos transexuais.
Após a análise jurídica da questão, o caso foi prontamente recebido pelo Centro de Exercício Jurídico da Newton Paiva, que oferece gratuitamente serviços de cunho jurídico nas áreas cível, criminal, familiar e previdenciária. A ação foi proposta e tem trâmite perante o juízo da 10ª Vara de Família de BH. Segundo ela, os casos estão suspensos no Supremo Tribunal Federal aguardando uma decisão, já que está tramitando a mudança para o nome social para pessoas trans que não fizeram a cirurgia de transgenitalização. “Infelizmente, é temerário dizer qual o prazo de duração do julgamento da questão pelo STF”, afirma.