Pitangui – “Foi milagre.” A frase foi repetida à exaustão por moradores da cidade colonial de Pitangui, no Centro-Oeste mineiro, onde 45 imagens sacras – a maioria do início do século 18 e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – resistiram a um incêndio na semana passada. As chamas se alimentaram de boa parte do prédio de três andares onde o acervo estava depositado.
Para reforçar a teoria dos fiéis, após os bombeiros controlarem as labaredas, as peças foram trancadas numa sala até serem transferidas para um lugar seguro, longe da cobiça de quadrilhas especializadas no furto de obras sacras. Eis que novo mistério só fez aumentar a fé dos devotos.
Os moradores estão aliviados com a preservação das peças, mas indignados com a destruição do prédio. O imóvel fica no Centro histórico e era ocupado por uma agência do Banco do Brasil (primeiro e segundo andares) e pelo Instituto Histórico de Pitangui (terceiro pavimento). Por volta das 2h de 11 de setembro, mais de 20 criminosos invadiram a cidade com armamentos pesados, trocaram tiros com a polícia e usaram dinamites para explodir o cofre da agência.
Ninguém se feriu. Mas em poucos segundos os explosivos incendiaram o primeiro piso. Uma cortina de fumaça, acompanhada de fuligens e calor, se alastrou para o segundo e o terceiro pavimentos. O desespero tomou conta dos moradores, pois o acervo do museu conta a história da sétima cidade mais antiga do estado, fundada em 1715 por bandeirantes paulistas que perderam a Guerra dos Emboabas (1707-1709).
Bombeiros de Nova Serrana, a 50 quilômetros de Pitangui, foram acionados. O calor no interior do prédio gerou angústia e preocupação do lado de fora, pois as imagens, muitas com integração cromática e assentadas com folhas de ouro, foram restauradas em 2015 por técnicos da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg). Por isso, até hoje, estão embaladas em plástico para evitar contato com a poeira.
Houve receio de que o calor danificasse as peças de madeira ou até mesmo derretesse o plástico, o que também poderia prejudicar o acervo. Mas como propagaram os fiéis: “Foi milagre”. Resta saber a qual santo a proteção deve ser atribuída. Ao negro Benedito? Uma imagem do servo de Deus faz parte do acervo. O santo é popular em cidades como Pitangui, onde a escravidão deu origem a comunidades quilombolas.
Ou talvez o milagre tenha sido obra de Nossa Senhora das Dores? A imagem da santa, esculpida em madeira no século 18, pesa 60 quilos. É a segunda vez que a peça resiste a incêndio. Em 1914, as labaredas destruíram por completo a antiga matriz. Na cidade, contam que um senhor franzino desafiou as chamas, entrou no templo que não existe mais e, sozinho, retirou a imagem de lá.
O acervo também tem um exemplar de Nossa Senhora da Penha, levada pelos primeiros brancos que desbravaram o então inóspito sertão do que viria a ser, em 1720, a capitania das Gerais. Tem 80 centímetros de altura e 40 centímetros de largura. Ainda há imagens do flecheiro São Sebastião, tema de música O milagre da flecha, sucesso na voz de Moacyr Franco.
“Veja o santo de passagem/ Não me toque nas imagens/ Me avisou o sacristão/ Pois lá ninguém explicava, uma flecha que faltava/ Na imagem de São Sebastião”, diz a canção. Coincidentemente, falta uma flecha no Sebastião de Pitangui. Todo 20 de janeiro, data dedicada ao santo, uma multidão de católicos vai à igreja erguida em homenagem ao servo de Deus. Umbandistas também participam da celebração, pois o sincretismo de Sebastião, na religião afro-brasileira, é com Oxossi, o orixá das matas.
No acervo ainda há castiçais, cálices, crucifixos e quadros. No último fim de semana, todas as peças foram retiradas, numa operação sigilosa, do que sobrou do prédio. Foram levadas para um local seguro e fora das fronteiras de Pitangui.
As peças poderiam estar em local apropriado, no Museu Sacro do município. Contudo, a restauração do sobrado, financiada principalmente com recurso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das cidades históricas, foi paralisada em 2015. O prédio está fechado ao público há mais de 20 anos. Reabri-lo não depende de milagre.