Januária – Os milhões de toneladas de sedimentos que vêm soterrando o Rio São Francisco – como denunciou ontem o Estado de Minas, com base em estudo inédito elaborado pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos e pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) –, não mata a vida no rio apenas pelo assoreamento de seu leito. O principal berçário para a reprodução de espécies na bacia também vem sendo sufocado como consequência da erosão, que entope nascentes e lagoas marginais.
Situado no município de Januária, no Norte de Minas, o pântano do Rio Pandeiros, também conhecido como “Pantanal Mineiro”, é considerado o maior responsável pela reprodução de peixes do Rio São Francisco e de espécies de aves migratórias. Para tentar protegê-lo, em 2004 foi criado por decreto o Refúgio Estadual da Vida Silvestre do Rio Pandeiros, que se estende por cerca de 6 mil hectares de cerrado e mata seca. Apesar de toda a sua importância, o ecossistema está sendo altamente degradado pelo mesmo processo de soterramento que atinge toda a bacia. Segundo o estudo elaborado por engenheiros do Exército norte-americano e técnicos da Codevasf, o leito do Velho Chico vem sendo castigado com 23 milhões de toneladas por ano de sedimentos, boa parte transportada ao leito principal por afluentes.
A área de lagoas do “Pantanal Mineiro” vem sendo assoreada como consequência do surgimento de imensas voçorocas (grandes crateras decorrentes da erosão). Como no restante da bacia, o problema tem como causa o desmatamento. Com a retirada da cobertura vegetal, o solo ficou descoberto e surgiram imensos buracos em encostas, resultado da desagregação do terreno arenoso, cujo sedimento é carreado para as partes baixas, entupindo veredas e nascentes, além de se deslocar para o próprio leito do Pandeiros e para a região de pântano.
A equipe do Estado de Minas percorreu o “Pantanal Mineiro”, que ainda conserva sua beleza, mas onde a lâmina d’água está bastante reduzida. Além do assoreamento, constatou outra forma de degradação: o pisoteio do gado, com animais pastando dentro do pântano e em áreas de nascente, apesar de tratar-se de uma área de proteção ambiental.
"Há 10 anos vi esse rio caudaloso e fundo. Hoje, o nível está tão baixo que acho que ele corre o sério risco de 'cortar' (secar completamente em determinados pontos)"
Mário Lúcio dos Santos, supervisor regional do IEF em Januária
AVANÇO DA SECA
O supervisor regional do Instituto Estadual de Florestas (IEF) em Januária, Mário Lúcio dos Santos, afirma que a área inundada do refúgio hoje chega, no máximo, à metade da região inicialmente protegida. “Diminuíram o tamanho da lâmina d'água e também a profundidade das lagoas, pelo aumento da quantidade de sedimentos no local”, afirma.
Ele salienta que a região do entorno da cabeceira do Pandeiros sofreu severos impactos do desmatamento para implantação de monocultura de eucalipto e pastagens para criação de gado. Outro sério problema foi a movimentação de terras para abertura de estradas vicinais no passado, sem obedecer a critérios técnicos, o que deixou o solo arenoso descoberto. Como consequência surgiram as voçorocas, cujo sedimento desceu para a área de pântano, situada perto da foz com o Rio São Francisco.
Mário Lúcio salienta que, diante da gravidade da situação, o IEF vem adotando obras emergenciais de contenção das voçorocas, afim de impedir que o berçário do Velho Chico venha a secar de vez. O instituto também vem buscando parcerias com outros órgãos e com o Ministério Público do Meio Ambiente, visando conseguir recursos para salvar o Pantanal Mineiro.
Preocupado com o Pandeiros, o técnico ambiental se diz também alarmado com a situação de agonia do Rio São Francisco. “Há 10 anos vi esse rio caudaloso e fundo. Hoje, o nível está tão baixo que acho que ele corre o sério risco de ‘cortar’ (secar completamente em determinados pontos)”, avalia Mário Lúcio.
A mais vulnerável das bacias do país
Com vazão reduzida, represas com níveis de acumulação baixos e recuando dia após dia, sendo soterrado por sedimentos e sofrendo os efeitos nocivos do desmatamento do cerrado e da caatinga, o Rio São Francisco é a mais vulnerável entre todas as bacias brasileiras. O diagnóstico é do próprio presidente do comitê da bacia hidrográfica (CBHSF), Anivaldo Miranda.
Os problemas são agravados ainda pela “falta de gestão sustentável dos recursos hídricos na bacia”, avalia. Ele salienta que, apesar a situação de penúria, o São Francisco tem a missão de transformar a região do semiárido, respondendo por 70% da disponibilidade de água na Região Nordeste do país. Ressalta também que o assoreamento é um problema grave não somente por reduzir o volume de água, mas também por inviabilizar a navegação no rio.
O presidente do CBHSF disse que os governos dos estados não contam com planos de gestão das bacias hidrográficas eficientes, o que dificulta a implantação de medidas de proteção e de controle do uso do recurso hídrico. “Falta fazer o dever de casa. Os governos estaduais precisam ter planos de gestão das águas. Precisa haver cadastro de usuários e sistemas de outorga confiáveis”, disse Miranda.
Ele afirma o desmatamento avançou nas regiões ribeirinhas por causa da ganância e da falta de fiscalização. “Basta as pessoas respeitarem as faixas de proteção (nas margens do rio) para se evitar os prejuízos à natureza. Mas, a ganância é muito grande. Como não existe fiscalização, os proprietários (rurais) estendem os plantios até as margens dos rios”, ciritcou. Miranda reclamou que comitês de bacia têm a maior parte dos seus componentes voluntários, sem condições de coibir as agressões à natureza.l Assim, “a maioria dos crimes ambientais fica impune”.
DIAGNÓSTICO Anivaldo Miranda anunciou que o CBHSF prepara um grande levantamento ao longo de todo o percurso do Rio São Francisco, com um uso de recursos tecnológicos e imagens aéreas. Será feito um diagnóstico de toda cobertura vegetal existente e dos impactos ambientais no rio. Objetivo é obter subsídios para medidas de conservação e de controle do uso da água.
Conforme o presidente do comitê, serão catalogados pontos de captação de água, incluindo as captações legais (com outorgas) e as clandestinas. “Será feito um recadastramento de dos usuários da bacia, não somente de quem capta, mas também quem lança esgoto e efluentes no rio”, informa Miranda.
O presidente do comitê da bacia defende a implantação de sistemas de cobrança pelo uso da água bruta. “É importante que todos paguem, até como forma de se começar a valorizar o consumo, o que é fundamental para a economia de água”, comenta.
Área de desova da maioria das espécies de peixes
De acordo com o Instituto Estadual de Florestas, o Refúgio do Pandeiros é responsável pela reprodução de 70% das espécies de peixes do São Francisco. Por isso, a degradação do ecossistema afeta toda a bacia. O local é também hábitat de aves como martim-pescador, pato-do-mato, mergulhão e garça-branca-grande, além de animais como jacarés e capivaras. Os danos à natureza no Pandeiros e a necessidade de sua conservação chamaram atenção até do WWF (World Wide Fund for Nature), entidade ambiental de caráter internacional.
O engenheiro de pesca José Vanderval de Mello salienta que o Pantanal Mineiro é o principal conjunto de lagoas marginais que serve para a reprodução de peixes em um trecho de 800 quilômetros do Rio São Francisco, entre as usinas de Três Marias (MG) e Sobradinho (BA). Por isso, o espaço tem uma importância ímpar como berçário da bacia. “Na época da piracema é visível a grande quantidade de peixes que entram no pantanal do Pandeiros para a reprodução”, relata Vanderval.
O agricultor Pedro Neves Ferreira, que mora em seu sítio próximo ao “refúgio” do Pandeiros, testemunha que a cada ano o ecossistema tem o volume de água reduzido. “Com o desmatamento, apareceram muitas voçorocas nas nascentes e na cabeceira do Pandeiros. Com isso, a areia está assoreando rio”, observa Pedro.