– Me vê um black picado, por favor?
– Só tenho azul.
– Tudo bem, pode ser. Estou só com uma nota de R$ 20 aqui. Tem troco?
– Nenhum, mas pode levar. Passa aqui mais tarde e acerta.
O comércio de “blacks” e “azuis” picados – expressões usadas por fumantes para se referirem a cigarros avulsos da marca Lucky Strike – ocorre diariamente na banca de jornal de dona Yeda Freitas, situada há 45 anos em frente ao Hospital João XXIII. No verso de uma das embalagens, o alerta do Ministério da saúde que o freguês em questão – vestido com o uniforme verde que caracteriza os profissionais do João XXIII – com certeza, sabe de cor: “Fumar causa câncer de laringe”. Quem assistiu à cena, contudo, certamente chegou à outra conclusão: não fumar, naquele momento, causaria no rapaz um colapso.
Cansado, visivelmente nervoso, ele leva poucos segundos entre acender o isqueiro e a primeira baforada. A reportagem tenta se aproximar. “Oi, o senhor é médico?”, pergunta a repórter. Mas o homem se afasta sem responder, assim que vê o crachá do Estado de Minas. Diz que tem pressa, não está autorizado a dar entrevistas. A confirmação vem de Ademirdes Silva, filha de criação de dona Yeda, a proprietária da banca. “Ele é médico. Hoje, está todo mundo no maior estresse dentro desse hospital. A tensão lá dentro é sempre grande, mas esses dias têm sido mais apertados”, relata a comerciante
Sem comemorar, ela conta que o movimento se intensificou em seu pequeno negócio desde o massacre de Janaúba, no Norte de Minas, protagonizado pelo vigia Damião Soares dos Santos, de 50 anos. Na última quinta-feira, ele ateou fogo em uma das salas do Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente, ocasionando, até o fechamento desta edição, a morte de oito crianças, dois adultos (incluindo o próprio Damião), e dezenas de feridos. Referência no tratamento de queimados, o João XXIII recebeu 14 vítimas da tragédia. Duas foram transferidas para o Hospital Infantil João Paulo II e outras três foram para o Odilon Behrens. Sete pequenos e duas professoras permanecem no HPS. “Profissional de saúde fumante? É o que mais tem. Fica aqui meia hora e você vai ver quantos aparecem para comprar cigarro. Os que não fumam descontam o nervosismo no chocolate”, diz Ademirdes.
Os comentários dela e de outros ambulantes próximos eram praticamente a única forma de acesso externo ao clima dentro do pronto-socorro. Dos faxineiros aos cirurgiões, os funcionários da unidade aproveitavam seus breves momentos de pausa em silêncio, sem dar brecha à imprensa.
FAMÍLIA Do lado de fora do Hospital João XXIII, os gestos de solidariedade demonstrados faziam com que seus praticantes, por vezes, se comportassem como parentes. Família, aliás, é o sentimento que parece unir os janaubenses, que compareceram em peso à porta do hospital. “Moro em BH, mas sou de Janaúba. Vim aqui ver se encontro algum familiar das vítimas internadas para oferecer minha casa, um banho, o que as pessoas precisarem. Não consegui nem trabalhar hoje”, diz, emocionada, Maria Omilda Ferreira. Antes que ela terminasse de falar, um conterrâneo a interrompeu para abraçá-la, com os olhos também marejados. “É muito triste isso que aconteceu na nossa cidade”, comentou o homem, que não quis se identificar.
Entre orações e busca de notícias, eles se apresentavam entre si à moda do município interiorano. “Meu sobrenome na certidão é Ferreira, mas eu sou da família dos ‘Dias’, e você?”, pergunta uma janaubense. “Sei sim. Você é parente José Inocêncio Dias? Eu sou dos lado dos Peres”, respondeu outro visitante.
Quem nunca pisou na cidade do Norte mineiro também fez questão de oferecer apoio. Dona Deusenir Alves, aposentada de 60 anos, deixou no local reservado às homenagens para as vítimas do massacre uma oração e algumas palavras de conforto. “Não sou mãe, mas sei o que é perder alguém que a gente ama. Esse caso me tocou muito. Que Jesus conforte todas as famílias que sofrem em Janaúba com o mesmo carinho e misericórdia com que já me confortou tantas vezes. Vou ficar aqui um tempo só para oferecer meu abraço a quem precisar”, emociona-se a senhora.
Sob forte emoção
(Guilherme Paranaiba) A tragédia dentro da creche Gente Inocente, em Janaúba, no Norte de Minas, demandou uma grande reorganização no Hospital João XXIII, unidade referência no estado para tratamento de queimados que assumiu o tratamento dos feridos em pior situação. Ao receber 12 crianças e dois adultos, a unidade de saúde centralizou seus recursos para atender os pacientes, ativando um protocolo de catástrofes que tem apoio de outros hospitais. O Risoleta Neves, na Região de Venda Nova, por exemplo, se prontificou a receber outros tipos de casos para que o João XXIII se preocupasse exclusivamente na dedicação aos queimados. A situação gerou grande comoção dos próprios profissionais de saúde, segundo o diretor do hospital, Silvio Grandinetti Júnior. Com 40 anos de experiência na unidade, o médico que se especializou na pediatria destaca que a tensão acompanha os envolvidos no tratamento e por isso é preciso ter tranquilidade, mesmo sob forte emoção.
“Nesse momento a gente tem que ter serenidade na atenção às vítimas e aos familiares. Decisões terapêuticas importantes têm que ser tomadas em segundos e por isso nós temos que ter muita calma. Com certeza, é muito estressante. No final, quando dá tempo de parar, é aí que a gente sofre as consequências. A gente desaba um pouquinho, pois a tensão é muito grande”, afirma o profissional que também dirige o Hospital Maria Amélia Lins, outra unidade da rede da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig).
Grandinetti diz ter visto no rosto de seus profissionais a emoção visível principalmente pelo fato de a maioria das vítimas ser crianças. De todos os 14 pacientes que entraram no hospital, dois foram transferidos para o Hospital Infantil João Paulo II e outros três foram para o Odilon Behrens. Sete crianças e duas professoras permanecem no João XXIII. “Pelo fato de serem crianças, a comoção é maior. Todo mundo que é pai e é mãe vendo aquela situação fica muito triste. A dor é indescritível”, diz o diretor. Ele acrescenta ainda que o hospital conta com uma equipe de psicólogos para atendimento de vítimas dos mais diversos problemas e seus familiares e essa estrutura também pode ser usada a favor dos próprios funcionários, caso eles sintam necessidade. Na sexta-feira, um psicólogo ministrou sessões de ioga para ajudar no relaxamento daqueles que tiveram interesse na ação.
“É uma tristeza isso que aconteceu, mas a resposta que tivemos de todos os profissionais do hospital é indescritível. A atuação desde o porteiro até a direção foi fantástica. A emoção estava visível em todos os funcionários. O que eu vi foi uma solidariedade entre todos. Vários trabalhadores que não estavam escalados vieram ajudar fora do seu horário de trabalho”, completa Grandinetti, destacando que a unidade está fazendo o possível para entregar as vítimas de volta para suas famílias nas melhores condições.