Uma máquina que nunca para, trabalha a todo vapor e que tem sofrido em suas engrenagens o peso da crise financeira na saúde enfrenta, desde a última semana, um de seus maiores desafios. O Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, referência em Minas no atendimento a politraumatizados, intoxicação e queimados, ativou seu protocolo de catástrofe para receber 11 vítimas do incêndio na creche em Janaúba, no Norte de Minas, no último dia 5, que já provocou 11 mortes. Essa não é a primeira vez que o plano de contingência para atendimento a múltiplas vítimas é acionado, mas, agora, ocorreu em meio a um problema que se arrasta há cerca de três anos. Na unidade, funcionários convivem com atraso e parcelamento de salários, faltam médicos e outros profissionais de saúde, equipamentos estragados demoram a ser consertados ou repostos e até mesmo insumos chegam a faltar nos estoques, o que atrasa procedimentos e cirurgias. Há ainda deficiências na infraestrutura física. Funcionários sustentam que a situação afeta o trabalho e cobram melhorias e investimento na unidade de urgência e emergência que realiza 340 atendimentos por dia.
No dia da tragédia na cidade do Norte de Minas, o vigia Damião Soares dos Santos, de 50 anos, ateou fogo a cerca de 35 crianças, professoras e ao próprio corpo dentro de uma sala de aula da Creche Gente Inocente, onde trabalhava. No mesmo dia, crianças começaram a ser transferidas para o HPS, vindas de avião e entubadas. Algumas tinham até 90% do corpo queimado, em quadro considerado gravíssimo. O ato criminoso deixou nove crianças e uma professora morta e mais de 40 feridos. O autor do ataque também morreu, ainda no local.
Um dia antes do incêndio, o diretor do João XXIII, Sílvio Grandinetti, já havia detalhado a situação preocupante da unidade a integrantes da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Minas Gerais que visitaram o hospital. Na ocasião, foi constatado, segundo parlamentares, que o sistema elétrico apresentava defeitos, elevadores estavam em estado crítico, o projeto de segurança e incêndio está defasado e que em alguns casos falta até água quente para banho de pacientes. A carência de pessoal e a falta de verba também ficou constatada na visita à instituição. Somente no quadro de médicos, o déficit observado foi de 65 profissionais. “Perdemos profissionais em função das condições precárias de trabalho, e não temos governabilidade sobre o pagamento dos salários, que é feito pela Secretaria de Estado de Planejamento”, informou a assessoria de imprensa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), por meio de nota.
Na ocasião, o diretor disse ainda que o HPS precisar de uma obra estrutural no valor de R$ 100 milhões, mas que não há perspectiva para chegada do recurso. Ele explicou que o custo de manutenção mensal do estabelecimento é de R$ 5 milhões, mas que o faturamento não chega a R$ 3 milhões. A assessoria da Fhemig mencionou ainda uma dívida de cerca de R$ 6 milhões que o município de Belo Horizonte teria com a fundação. Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou que “o encontro de contas entre dívidas em relação a débitos da Secretaria Municipal e Secretaria de Estado da Saúde/Fhemig está sendo feito” e que o trabalho ainda não foi concluído, pois há discordância entre valores, conforme análise de cada esfera."É inevitável que toda essa situação acabe afetando o atendimento. O hospital está sempre cheio e equipes estão desfalcadas por aposentadorias e afastamentos, e as reposições não ocorrem sempre"
Marcos Mafra, coordenador do Serviço de Cirurgia Plástica
INSATISFAÇÃO “Todos os funcionários se esforçam para oferecer o melhor para o atendimento aos pacientes. Mas é inevitável que toda essa situação acabe afetando o atendimento, porque a demanda é enorme e diária. O hospital está sempre cheio e, paralelamente a isso, equipes estão desfalcadas por causa de aposentadorias e afastamentos, e as reposições não ocorrem sempre, sob alegação de que o estado não está podendo contratar por causa de Lei de Responsabilidade Fiscal”, afirma o coordenador do Serviço de Cirurgia Plástica do João XXIII, Marcos Mafra. Além disso, há a questão dos salários, que vêm sofrendo atrasos e têm sido pagos de forma parcelada. De acordo com o coordenador, em razão de todos os problemas, funcionários estão trabalhado com sobrecarga e insatisfeitos.
“Algumas pessoas começaram a adoecer e isso tem sido visto nitidamente na rotina do hospital”, afirmou. Ele disse ainda que uma unidade que funciona a todo vapor exige manutenções permanentes, mas elas não vêm ocorrendo na mesma velocidade de que o hospital necessita. “Tudo isso envolve gastos. E, no dia a dia, a gente vê muita coisa estragada. Vai desde equipamentos até um banheiro sem porta, um vaso sanitário sem tampa, um elevador pifado. Quando o paciente é internado em um hospital, ele quer que tudo esteja funcionando de forma adequada”, afirmou Marcos Mafra.
O médico que, assim como tantos profissionais do HPS teve a rotina de trabalho alterada desde o dia do incêndio na Creche Gente Inocente, desabafa sobre a última semana em que pacientes gravíssimos chegaram ao hospital. “Foi uma semana de muita comoção, de muita dor. Nenhuma das crianças chegou consciente. Todas estavam entubadas e tinham estado grave. As que tiveram alta nos últimos dias estavam muito assustadas”, contou. O cirurgião acrescenta que, mesmo com toda a situação de crise, todos os funcionários que estavam de folga e foram convocados ao trabalho diante do quadro de emergência compareceram e até mesmo quem não foi chamado se prontificou a ajudar.A respeito do atendimento às vítimas de Janaúba, especificamente, o médico conta que todos os esforços foram empenhados pelo hospital, mas reconhece que há situações pontuais em que, por demanda excessiva e falta de recursos, algum tipo de serviço é protelado. “Neste momento, há uma cobrança muito grande da sociedade e também de nós, profissionais, para resolução dos problemas das crianças e dos dois adultos (internados na unidade). Estamos trabalhando muito rapidamente e da melhor forma. Queremos ver o paciente, de modo geral, receber alta o quanto antes. Mas, por vezes, temos desafios, porque o setor público tem que seguir procedimentos burocráticos, fazer licitações que, com a falta de recursos, ficam ainda mais complicadas”, diz o médico.
ESFORÇO Segundo a Fhemig, a atual situação do Hospital João XXIII, assim como de outras unidades assistenciais da fundação, “está sendo devidamente analisada, com a urgência que o tema requer”. “Lembramos que tanto Minas Gerais quanto os demais estados e a própria União enfrentam uma severa crise econômica, o que levou Minas a decretar calamidade financeira, exatamente com o objetivo de retomar investimentos em áreas prioritárias, como a saúde. Ainda assim, a Fhemig está envidando todos os esforços para a melhoria da estrutura do João XXIII”, afirma a nota.
O texto acrescenta que houve investimento de R$ 6 milhões na compra de outro tomógrafo, novos monitores, camas, adequação dos elevadores e da caldeira da unidade.