Conselheiro Pena e Governador Valadares – Às vésperas de completar dois anos, a tragédia de Mariana, considerada o maior desastre socioambiental da história do país, não prejudicou apenas o meio ambiente e populações inteiras no caminho da lama. Até mesmo pessoas do mesmo ramo da empresa responsável pelos danos, a mineradora Samarco, foram afetadas. Dono dos direitos para a extração de ouro em boa parte do Rio Doce, o minerador João Batista de Oliveira, de 46 anos, não consegue retirar mais um grama do metal precioso do manancial desde o rompimento da Barragem do Fundão, em 5 de novembro de 2015. “Seis das minhas dragas afundaram com o rejeito que veio pelo rio e a Samarco não me reconhece como atingido. Até hoje não recebi nem uma garrafa de água. Como ninguém sabe se o rio está contaminado, não consigo gente para operar as dragas, nem investidores para tocar a mineração. Estou devendo R$ 300 mil e com o nome sujo na praça”, lamenta o valadarense.
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O medo de mergulhar em um rio poluído e afetar, com isso, a sua saúde afugentou os últimos operadores de dragas que o minerador João Batista tinha trazido de Porto Velho (RO) para a região do Rio Doce. “Os trabalhadores têm de mergulhar e ficam até duas horas sondando o fundo do rio com a draga. Mas ninguém mais quer descer lá, com medo de pegar alguma doença, de morrer contaminado por causa do tanto de rejeito que ainda está no fundo.
O medo de quem não compra peixes pescados na Bacia do Rio Doce acaba sendo corroborado por estudos que atestam o alto grau de contaminação dos animais. De acordo com exames feitos pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), 60% dos espécimes coletados no Rio Doce, na região da Barragem de Baguari, em Governador Valadares, apresentavam contaminação por metais pesados como mercúrio, cádmio, chumbo e arsênio. “São contaminantes extremamente nocivos para a vida aquática e para a saúde humana também. Não devem ter sido desprendidos dos rejeitos em si, mas acumulados ao longo dos anos, principalmente das atividades minerárias nos rios do Carmo e Gualaxo do Norte. Isso tudo acabou sendo revolvido do fundo pela lama quando desceu da barragem”, afirma o professor de recursos hídricos da instituição, Alexandre Sílvio Vieira da Costa. Relatórios do Igam também detectaram a presença de mercúrio na região em 2016.
Em Baguari, distrito de Valadares, o aposentado Elber Geraldo da Silva, de 54, diz manter pelo menos 20 mil peixes resgatados do Rio Doce em dois tanques que ficam em uma propriedade à margem do manancial.
Renova faz defesa de ações de recuperação
A Fundação Renova informa que foram instalados 92 pontos de monitoramento da qualidade da água ao longo do Rio Doce e que a presença de peixes foi identificada, inclusive em locais onde os rios foram severamente impactados, mas ainda não há informações sobre a contaminação desses espécimes. A fundação também rebate a ideia de que pouco foi feito até o momento. De acordo com o diretor de programas da Renova, Marcelo Eduardo Figueiredo, uma área de 800 hectares já foi recuperada. “Nessa primeira etapa fizemos a reconformação geométrica (das calhas e das margens do rio), implantamos sistemas de drenagem nos 117 primeiros quilômetros, tudo isso com processos de bioengenharia”, afirma. O plano de manejo dividiu os trechos de rios impactados em 17 áreas onde ocorrerão diferentes ações de recuperação. “As ações vão desde a retirada do rejeito até a bioengenharia nas margens, drenagens nas áreas de recarga hídrica, revegetação de tudo nas planícies, cercamento, são diversos tipos de ações”, afirma.
Das 10 mil nascentes identificadas ao longo do rio, mil foram cercadas, afirma. Uma área de 40 mil hectares será reflorestada a partir de 2018 em trechos ainda não divulgados. Sobre os peixes de Baguari, a Renova informou não ter informações sobre esses reservatórios, mas afirma que 1.100 animais domésticos e de criação impactados estão ainda sob a custódia da fundação em três fazendas.
DEPOIMENTO
Mateus parreira
Repórter
A ilusão das águas claras
“A bordo do pequeno barco de madeira pilotado pelo pescador Jonas Ferreira de Souza, de 66 anos, atravessei o Rio Doce, em Conselheiro Pena, até a chamada Ilha do Jonas. Minha última recordação do rio em um trecho próximo era de uma água vermelha, exalando cheiro de ferrugem por causa dos rejeitos. Desta vez, me impressionou o fato de as águas superficiais estarem límpidas a ponto de se enxergar o fundo. E era nesse fundo – um raso, na verdade, com menos de um metro de profundidade –, que estava o rejeito que veio de Mariana. Enquanto navegávamos, o minerador lamentava ter perdido tudo, porque não conseguia mais gente para mergulhar e operar as mangueiras das dragas. Era paradoxal imaginar que o medo da contaminação intimidava homens forjados na dureza dos garimpos de ouro, onde se usa clandestinamente até o perigoso mercúrio, a ponto de impedi-los de entrar num rio de águas claras que mal bate nos joelhos.”.