O primeiro sinal de comunicação com os pais, na mais terna idade, foi apontar a barriga com a palma da mão e, em movimentos rápidos, mostrar que estava com fome. Hoje, aos 24 anos e no 9º período de direito, a belo-horizontina Maria Guilhermina Miranda Campos de Abreu se recorda do gesto com ternura e deixa claro que o apetite continua voraz: tem sede de justiça, amor pelo ensino de qualidade, paixão pelo empreendedorismo social e vontade cada vez maior de trabalhar pelo futuro, entre outros desejos e desafios. “Temos que parar de reclamar e partir para ação, fazer algo”, diz a jovem de pensamento claro e rapidez nas palavras, que está envolvida numa empreitada de fôlego: implantar na capital uma unidade da Associação de Proteção e Assistência a Condenados (Apac).
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Falsos advogados resgatam preso da Apac de Santa LuziaGoleiro Bruno e Ingrid se casam na Apac de Santa Luzia depois de seis anos de namoroDetentos que fugiram de presídio em Barão de Cocais são recapturadosO sonho de implantar a Apac BH, nascido numa visita à Apac de Nova Lima, na Grande BH, entusiasma Guilhermina, que considera “de muito amor” a relação com o projeto, do qual esteve à frente e que, devido a uma eleição, está com nova diretoria. “Parto do princípio de que todos merecem uma segunda chance. Sempre falo que a educação é uma causa que escolhi, mas, no caso da Apac, foi ela que me escolheu.” A iniciativa conta com a união de esforços do grupo Minas pela Paz, em atuação desde 2013, e que tem entre as lideranças o juiz da Vara de Execuções Criminais Luiz Carlos Rezende.
Nas palestras que tem feito, a belo-horizontina filha de pais surdos, os professores Antônio Campos de Abreu e Rita de Cássia, especializada no ensino de Libras (Língua Brasileira de Sinais) –, faz uma comparação entre seus objetivos e a campanha do Clube Atlético Mineiro rumo à Taça Libertadores da América, em 2013. “Torço para o Galo, mas não entendo nada de futebol.
TRANSFORMAÇÃO Imersa em várias atividades, Guilhermina ainda está se preparando para uma viagem, neste mês, aos Estados Unidos. No Babson College, em Boston, fará um curso de uma semana, resultado de uma premiação para a melhor iniciativa do país no ensino de empreendedorismo. Satisfeita, ela recorda que, até chegar aqui, foi uma trajetória de muitos questionamentos. A escalada começou na adolescência, quando, estudante de escola pública na capital, começou a criticar a qualidade do ensino e a falta de estrutura e de comprometimento dos professores, enfim, o sistema educativo como um todo e a educação formal como é hoje. “Se em Belo Horizonte é assim, como será no Vale do Jequitinhonha?”, perguntava-se a aluna do ensino médio.
As respostas não vieram de imediato: foi preciso sofrer muito, pensar mais ainda e ir à luta para entender que toda a engrenagem estava enferrujada, daí causar tanto atraso. “Não via sentido em nada, fiquei desinteressada aos 14 anos”, recorda-se.
No dia a dia, Guilhermina começou a refletir sobre a forma de retribuir as oportunidades que teve e o que poderia fazer para ajudar a mudar o mundo. Basicamente, o tema era parar de reclamar e trabalhar a prática. Nesse embalo, nasceu com um grupo de ex-alunos de escolas públicas o programa Embaixadores da Escola, dividido em módulos (fases) e dedicado a estudantes também de escolas públicas. As metas são propor mudanças, estimular a empatia – “não damos lição de moral”, avisa a futura advogada – e manter um “papo reto” com os jovens. “É tudo espontâneo, orgânico”, com baixo custo, aproveitamento de material reciclado. A duração é de três meses em cada escola, em sistema de parceria, e as últimas foram na Pedreira Prado Lopes, na Região Noroeste, área de vulnerabilidade social e violência, e no Barreiro.
“Antes, gastávamos dinheiro do nosso bolso, agora formamos parcerias e agentes multiplicadores na faixa etária de 18 a 24 anos. E nas atividades, estimulamos os jovens a recolher o lixo, limpar o chão, enfim, colaborar com a comunidade”, diz a estudante de direito.
Novamente, a irmã de Antônio, de 25, e Helena, de 23, se lembra do primeiro sinal aprendido na infância e destaca a importância da família. “Aprendi a língua materna em Libras. Ser filha de surdos foi normal, eles tiveram uma boa educação, puderam estudar. A educação é a ferramenta, mas é preciso saber usá-la da melhor forma”, afirma Guilhermina.