Jornal Estado de Minas

Buracos cavados debaixo de viadutos viram casa para moradores de rua

Lavador de carros, Miguel conta que o pior na sua moradia encravada no viaduto não é a companhia de ratos e baratas, mas o frio à noite - Foto: Jair Amaral/EM/D.A PRESS

O ruído dos pneus girando sobre o asfalto ecoa diferente na parte interna do viaduto. Lembra, às vezes, o deslizar de um trem sobre trilhos, trepidando parte da estrutura de concreto oca. Um ambiente escuro e fresco, habitado por baratas, escorpiões e uma legião de ratos, que passou a ser usado como lar por moradores de rua e usuários de entorpecentes. Quem circula sobre os vários viadutos do Complexo da Lagoinha não imagina que sob as cabeceiras desta estrutura viária habitam pessoas que destruíram parte das paredes e cavaram tocas para viver.

“Aqui, pelo menos não é quente e não chove. Não tenho medo dos ratos. Eles não me incomodam. Só o que preciso é de mais agasalhos e roupas, porque quando esfria a gente passa muito frio se não acender um fogo”, disse Miguel, um homem de 29 anos que durante o dia lava carros na Região Central de Belo Horizonte e à noite se recolhe com o irmão para dentro da base da cabeceira do viaduto que dá acesso à Avenida Dom Pedro II.
De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) essa população é alvo de trabalhos sociais, sendo que sua estada nessas estruturas gera resíduos que precisam ser recolhidos e danifica as construções, abreviando os ciclos de manutenção.

O acesso de Miguel ao seu lar subterrâneo é feito por um buraco escavado entre a terra na base do viaduto e o concreto da cabeceira. Quando foi visitado pela reportagem do Estado de Minas, o homem estava dormindo. Usuário de entorpecentes como vários outros que vivem em outros viadutos do complexo, tinha alguma  dificuldade de organizar suas ideias e pouca disposição para responder às perguntas. Contudo, sua postura quanto à vida naquele local insalubre, frio, infestado de ratos e baratas é de satisfação. “Aqui, pelo menos tenho uma parede e um teto. Do escuro não tenho medo. Cresci nas ruas e lá é muito pior.
Os ratos não me incomodam, não vêm na gente. Só não podemos deixar aqui sozinho, porque se não alguma outra pessoa (morador de rua) pode querer tomar aqui da gente”, disse.


Acima da buraco por onde entra, ao longo da parte inferior do viaduto, as aberturas de acesso técnico às galerias da estrutura tiveram suas chapas de metal arrancadas. Mas, de acordo com Miguel, naquele ponto não é possível dormir, mesmo sendo um espaço maior. “Ali tem baratas demais, não dá para ter sossego não. As baratas carregam você”, disse. Em volta da abertura que usa de acesso para sua moradia subterrânea, uma grande quantidade de lixo sugere despreocupação com a higiene. São vários tipos de embalagens de marmitas, alimentos, bebidas, preservativos, garrafas quebradas, roupas rasgadas, sapatos velhos e um cheiro muito forte de fezes e urina. “Comida a gente recebe muita, vem do pessoal que doa para a gente.
Das igrejas, de gente que traz”, completa. O espaço interno da morada de Miguel tem o piso de terra que ele e o irmão limparam de entulho, forraram algumas partes e estenderam os colchões que usam para dormir lado a lado.

Nos outros viadutos, inclusive da Avenida Presidente Antônio Carlos, os moradores de rua e usuários de tóxicos simplesmente escavaram a terra sob a estrutura de concreto e lá armaram suas habitações. A reportagem encontrou pelo menos outros seis espaços que têm sido utilizados para essas finalidades. Em cada seção escavada sob os viadutos foram postados colchões entre muito entulho, roupas velhas, lixo e resíduos. Os moradores dessas cavernas têm apreço significativo por latas velhas que usam como fogareiros. Os trapos se amontoam como cobertores e travesseiros. Entre a disposição caótica de tanta quinquilharia, contudo, dá para se notar uma tentativa de amenizar a vida, decorando as tocas com quadros encontrados no lixo, pôsteres de carros e até brinquedos de plástico e pelúcias. Nesses locais, contudo, a reportagem não encontrou nenhum habitante.

Lixo, urina e fogo preocupam   

Enquanto os viadutos vão sendo escavados para servir de moradia para a população em situação de rua, em volta dessas estruturas cresce o acúmulo de lixo e destroços de equipamentos. São televisores, pneus, computadores velhos, equipamentos elétricos ou de maquinário mais pesado que são juntados e depois acabam sendo incinerados para que os moradores possam extrair metal. O alumínio, ferro e aço removido dessas peças representa um ganho monetário importante para eles, que vendem carrinhos cheios desse material ali perto mesmo para os ferros-velhos.
As negociações são feitas por peso e por isso qualquer coisa que tenha metal dentro acaba indo para o fogo. De acordo com um grupo de trabalhadores da limpeza urbana que foi encontrado recolhendo esses destroços com um caminhão, o lixo gerado enche uma caçamba em poucos dias e é um trabalho que precisa ser feito com frequência, pois na semana seguinte já há pilhas de lixo novamente nos mesmos lugares.

Segundo o manual de recuperação de pontes e viadutos do Ministério dos Transportes, tanto o fogo quanto a urina diretamente em contato com os pilares dos viadutos causam deterioração do concreto e obrigam que manutenções preventivas sejam feitas. “O concreto é capaz de manter resistência suficiente por períodos relativamente longos, permitindo operações de resgate, pela redução de colapso estrutural”, diz o manual. “A corrosão do concreto é um fenômeno essencialmente químico e depende tanto das propriedades do meio onde ele se encontra, incluindo a concentração de ácidos, sais (urina) e bases, como do próprio concreto”, diz a publicação. O manual salienta que o maior perigo é a exposição das armaduras de aço, que leva a intervenções mais urgentes para proteger as estruturas.

 

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