O surto de febre amarela que pelo segundo ano seguido assusta Minas Gerais – só na atual temporada são 96 mortes confirmadas pela doença no estado – e também outras unidades da Federação, como Rio de Janeiro e São Paulo, encontra um obstáculo virtual no caminho rumo à diminuição dos casos e controle da situação. Enquanto a vacinação se apresentam como a forma mais importante e segura para atacar o problema, um mar de boatos que se espalha feito rastilho de pólvora pelos celulares conectados à internet acaba gerando desconfiança da população, principalmente com relação à eficácia da vacina, que chega a 98% segundo a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES/MG).
Se você tem o costume de usar algum aplicativo de mensagens pela internet no celular ou está ligado às redes sociais já deve ter recebido alguma mensagem condenando a vacina. Seja em nome de uma médica do Instituto Butantan, de São Paulo, ou uma conversa entre pessoas ligadas ao Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte, ou até mesmo um link com uma matéria publicada no site da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), organização que é a responsável pela produção da vacina, com uma mensagem que não condiz com o teor da publicação. No texto, de 17 de maio do ano passado, a Fiocruz revela que estudos identificaram mutações no vírus da febre amarela ao fazer o sequenciamento genético, mas deixa claro que “sobre um possível impacto para a vacina disponível, os pesquisadores explicam que o imunizante adotado atualmente protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul-americano e o africano. Além disso, as alterações detectadas no estudo não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina”, informa o texto, ratificando que não há problema com o imunizante que é aplicado atualmente.
Reforçando o comunicado da Fiocruz, a médica infectologista Virgínia Zambelli, vice-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, destaca que os números de Minas Gerais mostram inclusive uma eficácia ainda maior do que é esperado, já que os 11 vacinados que contraíram febre amarela em Minas representam um percentual perto de zero em relação aos 16 milhões de imunizados. “As pessoas que ainda não se vacinaram e não têm contraindicações precisam se vacinar, pois ficar sem essa proteção é a maior forma de se expor ao risco da doença”, acrescenta a médica, destacando que nenhuma vacina é 100% eficaz.
Na onda virtual contra a vacina se destaca também um áudio atribuído a uma pessoa que seria médica do Instituto Butantan, organização paulista responsável por pesquisas na área biológica e produção de outros produtos usados no Programa Nacional de Imunização (PNI).
Na mensagem, a mulher desaconselha uma amiga a vacinar o filho, destacando que a vacina só é recomendada porque o risco de suas complicações é melhor do que morrer de febre amarela. Especialistas e o Ministério da Saúde apontam que o risco de uma reação adversa à vacina é de 1 caso para cada 400 mil aplicações e, conforme Virgínia Zambelli, não há nenhum relato desse tipo de complicação em Minas Gerais desde o surto do ano passado. Além disso, a mesma mulher aparece nos boatos como médica, pesquisadora, enfermeira e nunca tem seu nome revelado, motivos suficientes para gerar descrença.
O médico infectologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dirceu Greco lembra que, apenas em Minas Gerais, a média de imunização da população antes do primeiro surto, no ano passado, girava em torno de 45% – hoje é de 89%, ainda aquém dos 95% preconizados pelo governo de Minas e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para áreas de risco da doença. “Isso é uma explicação para os casos, pois o índice de vacina era baixo”, afirma Greco. A vacina produzida pela Fiocruz que protege contra a febre amarela é o vírus atenuado da doença, que motiva o organismo a produzir os anticorpos que vão proteger as pessoas para o resto da vida. Mas isso também foi suficiente para gerar boatos de que o vírus atenuado estava desenvolvendo a doença nas pessoas. “A vantagem da vacina atenuada é justamente o fato de que a resposta imunológica é mais intensa”, acrescenta Dirceu Greco.
INVESTIGAÇÕES A expectativa do subsecretário de Vigilância e Proteção à Saúde da SES/MG, Rodrigo Said, é de que os cerca de 2 milhões mineiros que ainda não foram imunizados no estado sejam vacinados o mais rápido possível, pois está mais do que provado que a vacina é a principal proteção contra a transmissão do vírus. “Estatisticamente, 11 casos são abaixo do que é visto pela literatura científica e isso nos aponta que a vacina tem sua eficácia. Agora, nós precisamos aprofundar a investigação dos 11 casos. Nas investigações que já fizemos e com os registros até o momento não encontramos situações específicas”, afirma. Por fim, Said faz um alerta para quem tem o costume de divulgar informações falsas na internet. “As pessoas devem checar as fontes das informações. Aqui na secretaria, todos os trabalhos seguem a medicina baseada em evidências e com o respaldo da OMS”, finaliza o subsecretário.
INFORMAÇÃO NA DOSE CERTA
Saiba o que é verdade e o que é boato sobre a febre amarela
FALSO
A vacina contra a febre amarela não é segura devido à mutação do vírus.
Explicação: As alterações detectadas no sequenciamento genético que comprovam a mutação não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina
FALSO
A dose fracionada da vacina da febre amarela, que contém 0,1ml, é mais fraca e por isso não protege.
Explicação: Estudo conduzido pela Fiocruz identificou a presença do mesmo nível de anticorpos da dose-padrão na dose fracionada até oito anos depois da imunização
FALSO
Os macacos transmitem febre amarela
Explicação: Os macacos são picados pelos mosquitos infectados e se tornam vítimas da doença da mesma forma que os seres humanos. Outros mosquitos que não estão infectados picam os macacos ou os homens, e, assim, criam-se as condições para espalhar a doença. Não há transmissão direta entre o macaco e o homem
FALSO
Médico de Sorocaba diz que a vacina contra febre amarela paralisa o fígado.
Explicação: Especialistas e autoridades de saúde apontam que há risco de efeitos colaterais na vacina da febre amarela em um a cada 400 mil casos. Entre os efeitos está a possibilidade de desenvolver a doença, já que a vacina é o vírus atenuado. Nesse caso, a forma grave da febre amarela pode apresentar complicações no fígado
FALSO
Ninguém deve tomar vacina, segundo uma enfermeira de Minas Gerais
Explicação: A vacina só não é recomendada para crianças de até 9 meses de idade, mulheres amamentando crianças com menos de seis meses, pessoas com alergia grave a ovo, pessoas que vivem com HIV e que têm contagem de células CD4 inferior a 350, pacientes em tratamento com quimioterapia e radioterapia, portadores de doenças autoimunes e pessoas submetidas a tratamento com imunossupressores
VERDADEIRO
Algumas pessoas mesmo vacinadas podem desenvolver a doença.
Explicação: A literatura aponta até 98% de eficácia da vacina, sendo possível que algumas pessoas, consideradas raríssimas exceções, desenvolvam a doença mesmo sendo imunizadas
VERDADEIRO
Uma pessoa com febre amarela silvestre pode ser fonte para um surto de febre amarela urbana
Explicação: No ambiente urbano, o Aedes aegypti pode transmitir a febre amarela, situação erradicada no Brasil desde 1942. Porém, se o Aedes aegypti picar uma pessoa que pegou a doença no ambiente silvestre, podem-se desencadear transmissões urbanas
VERDADEIRO
Existem casos em que somente um médico pode avaliar a necessidade da vacina.
Explicação: Idosos acima de 65 anos, pessoas que terminaram tratamento de quimioterapia/radioterapia, grávidas e pessoas que usam corticoide precisam consultar um médico para avaliar os riscos da imunização
VERDADEIRO
Não é possível eliminar o vírus da febre amarela silvestre
Explicação: Como é uma doença transmitida por animais, sua transmissão não é passível de eliminação, exigindo vigilância e ações de controle, como a vacinação
VERDADEIRO
A febra amarela não tem um tratamento específico
Explicação: Os cuidados focam nos sintomas, com atenção especial na reposição de líquidos e das perdas sanguíneas, quando indicado. Nas formas graves, a indicação é por uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) para reduzir complicações e risco de morte
EM ESTUDO
Quais são as consequências da mutação do vírus da febre amarela?
Explicação: Pesquisadores da Fiocruz fizeram o sequenciamento genético do vírus e descobriram mutações, mas ainda estudam os efeitos disso na prática
EM ESTUDO
Como fica a proteção contra a doença para quem recebeu a vacina fracionada após oito anos?
Explicação: Os estudos da Fiocruz indicam proteção semelhante à dose-padrão em até oito anos. O que deve acontecer depois desse período ainda é alvo de pesquisas
Estudos sustentam esquemas vacinais
Antes dos dois últimos surtos de febre amarela no Brasil, o país adotava o esquema com duas doses da vacina ao longo da vida (com intervalo mínimo de 10 anos). Depois passou a recomendar uma única dose e atualmente há uma decisão de oferecer a vacina fracionada para 15 milhões de pessoas no Rio de Janeiro, São Paulo e na Bahia. No caso da fracionada, sai a dose-padrão, que tem 0,5 ml, e entra uma quantidade cinco vezes menor, de 0,1 ml. Esse é um dos cenários por onde rondam parte dos boatos que circulam em velocidade máxima pela internet, principalmente em aplicativos de mensagens pelo celular.
Tanto no caso da dose única quanto da dose fracionada há estudos que comprovam a manutenção dos anticorpos. No primeiro, estudos apontam a manutenção das células de defesa contra a doença 30 anos depois da dose única. Por outro lado, o médico epidemiologista e professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UNB) Pedro Tauil destaca que ainda não há um consenso sobre a eficácia garantida para o resto da vida com uma única dose, que é preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Já no segundo caso, a Fiocruz desenvolveu uma pesquisa ratificando que a dose de 0,1 ml é suficiente para proteger as pessoas pelo menos nos oito primeiros anos. “As ações depois desse período ainda serão estudadas, mas neste momento é eficaz e é uma medida de saúde coletiva, para frear a transmissão do vírus de forma mais rápida”, diz a médica infectologista e vice-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Virgínia Zambelli.
A situação dos boatos tomou uma proporção tão grande que a própria Fiocruz, produtora da vacina contra a doença, publicou em seu site uma entrevista com o pesquisador do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Igor Sacramento, em que ele se mostra preocupado com o impacto das chamadas fake news na campanha de vacinação. Ele diz que ainda não é possível mensurar o tamanho do impacto, mas acredita existir uma reação popular complexa. “Ao mesmo tempo que vemos as filas aumentando, há uma crescente desconfiança em relação ao fracionamento (o termo leva as pessoas a crerem que se trata de algo menor, fragmentado, ineficiente, ruim) e à própria vacina, que poderia fazer mal e até levar à morte. Essas notícias se espalham com muita força nas redes sociais online, mas também em aplicativos de troca de mensagens como o WhatsApp”, disse o pesquisador.
MACACOS Na onda dos boatos sobra até para os macacos, que em muitas mensagens divulgadas pelas redes sociais são apontados como os responsáveis pela transmissão da febre amarela para os seres humanos. Informação completamente equivocada, segundo o médico epidemiologista e professor da UFMG, Dirceu Greco. Os primatas também são picados pelos mosquitos contaminados pelo vírus e também podem desenvolver a doença. O especialista aponta que, inclusive, o macaco é muito importante pois serve de sentinela. “A morte de um macaco em área de circulação do vírus é um sinal para a vigilância epidemiológica ficar atenta à possibilidade de transmissão para seres humanos”, afirma. Porém, várias mensagens se espalharam principalmente por grupos de WhatsApp apontando a necessidade de eliminar os macacos para que eles não passassem a doença para os humanos. “Se você mata um macaco pode até piorar a situação, diminuem as possibilidades de alimentação dos mosquitos”, afirma.
Falhas têm causas múltiplas
Produtor da vacina contra a febre amarela, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz) informou, por meio de nota, que tomou ciência, por meio de publicações na imprensa e em redes sociais, da hipótese de ter havido infecção pelo vírus da febre amarela em indivíduos previamente vacinados. Foi o que ocorreu, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, com 11 pacientes que tiveram a doença em Minas (SES-MG). O instituto esclareceu que, segundo o “Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação”, editado pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, a “falha vacinal” pode ocorrer devido a fatores relacionados ao hospedeiro, às vacinas, à utilização ou administração destas e aos programas de imunização.
No primeiro caso estão situações como imunodeficiência, idade (imaturidade ou senescência da resposta imune); insuficiente resposta imune para um ou mais componentes antigênicos, tipos ou sorotipos de vacinas; interferência por outros agentes infecciosos, entre outros.
Entre os fatores relacionados à vacina estão o fato de elas não serem 100% eficazes; cobertura inadequada de tipos, sorotipos, genótipos, variantes antigênicas ou mutações; interferência antigênica ou interações entre vacinas coadministradas; ou variação de lotes e falhas na qualidade do produto. Podem ainda ocorrer erros na administração e no armazenamento e conservação ou até mesmo prazos de validade expirados.
Sem o levantamento preciso de informações acerca de todas essas condicionantes, o Bio-Manguinhos/Fiocruz não pode precisar o que levou à falha vacinal nos casos descritos, diz a nota, que a reafirma que “a vacinação é a melhor forma de prevenção para a febre amarela e as demais doenças infectocontagiosas para as quais existe imunizante. De acordo com a SES-MG, uma equipe multidisciplinar está fazendo uma investigação clínica e epidemiológica dos casos no estado.