Uma das áreas de preservação mais apreciadas por turistas nos arredores de Belo Horizonte, o Parque Nacional da Serra do Cipó é uma das reservas ambientais vítima de “invasões” ocorridas por registros malfeitos do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Pelo menos quatro terrenos vizinhos à unidade simplesmente se projetaram para dentro da área de preservação, em Santana do Riacho, município a 93 quilômetros de capital mineira. No local, essa inconsistência se mostra mais que um mero erro de cadastro, já que partes da cerca de arame farpado que delimita o parque estão abertas, indicando a invasão de gado na área que deveria ser protegida.
Inconsistências como essa, que atinge a unidade conhecida pela flora abundante, com suas sempre-vivas, canelas-de-ema e bromélias brotando entre as montanhas rochosas, são verificadas em trabalhos de geoprocessamento da Fundação Educacional de Caratinga (Funec), no Vale do Rio Doce. Os técnicos que trabalham na região também encontraram, além das generalizadas sobreposições de terrenos, invasões de terras indígenas e até mesmo o cadastramento de terrenos em cidades erradas. O custo desse tipo de reparação caberá inteiramente aos estados. “O cadastro vai necessitar de uma profunda retificação. Há áreas que somadas já contam com o dobro da extensão que deveriam ter. Ao final, o que temos é uma distorção que não tem serventia técnica e vai demandar muito trabalho”, considera o coordenador executivo da Funec, Alessandro Saraiva Loreto.
De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), o estado de Minas Gerais se destacou pela considerável adesão dos proprietários rurais ao CAR, algo que foi apoiado inclusive tecnicamente pelo governo. “Ainda nesta primeira etapa de inscrição, a Semad realizou cerca de 350 treinamentos, 37 eventos de CAR itinerante, 100 palestras, além do auxílio no balcão do órgão ambiental, com a realização de cerca de 25 mil inscrições de imóveis”.
Contudo, devido às discussões sobre como será o procedimento da fase de análise das inscrições já recebidas, a Semad não tem ainda condições de saber quando poderá concluir a retificação das inconsistências do CAR. “A análise de um cadastro exige tempo técnico para uma validação completa. Tão logo essa fase se inicie, o órgão ambiental terá a condição de dimensionar os custos e tempo dispensados, em decorrência até mesmo das particularidades relacionadas às características dos imóveis do estado”, informou a secretaria.
Admitindo que há inconsistências, o diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Raimundo Deusdará Filho, argumenta ainda assim que o CAR está dentro de um processo natural de implantação. “Se não houvesse (o CAR) nem os problemas (relativos às propriedades e conflitos territoriais) conheceríamos. O CAR é um retrato das propriedades do Brasil”, disse. Segundo ele, uma ferramenta vai ajudar a detectar todas as inconsistências presentes no cadastro. “Desenvolvemos um módulo automático que emite alertas para os proprietários e para as bases dos estados, demonstrando que uma propriedade está com algum problema que precisa ser sanado”, disse, sem estimar, contudo, quanto tempo e esforço serão necessários para que o sistema seja condizente com a realidade.
Em Minas, o Serviço Florestal anunciou a implantação da ferramenta de alerta de incoerências e a capacitação de pessoal da Semad. “Será um alerta de erros automático e dentro do próprio ambiente virtual. O produtor será comunicado e caberá ao estado estipular o prazo para que isso seja feito. Não acredito que a situação seja tão ruim que necessite de tantas alterações”, disse Raimundo Deusdará Filho.
Rio Doce: após a tragédia, o descontrole
Estado com maior área no Sudeste do país, Minas Gerais apresenta sobreposições e inconsistências generalizadas no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Um exemplo nítido é a Bacia Hidrográfica do Rio Doce. O sistema de rios sempre foi um dos mais poluídos do estado, e sofreu degradação trágica após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015. Uma das esperanças na formulação de medidas reparatórias seria baseada exatamente nas informações do CAR.
Apesar das inconsistências, os proprietários de terrenos atingidos pela passagem do tsunami de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro ainda recebem auxílio dos técnicos contratados pela Fundação Renova, criada para lidar com os danos do desastre da Mineradora Samarco. Uma de suas ações é definida como “apoiar e dar suporte técnico ao cadastramento das propriedades rurais no CAR, além de fomentar a elaboração e a implementação dos respectivos programas de regularização ambiental”.
Logo depois do terreno da mineradora Samarco, em Mariana, a mancha que delimita o subdistrito devastado de Bento Rodrigues já aparece com três terrenos vizinhos sobrepondo-se ao seu território. O segundo subdistrito mais destruído, Paracatu de Baixo, também aparece como uma colcha de retalhos, com terrenos se amontoando sobre as mesmas áreas ao longo do Rio Gualaxo do Norte.
O Rio do Carmo, em Barra Longa, foi o segundo manancial a ser atingido, recebendo os detritos que vieram carreados pela calha do Gualaxo, horas após o rompimento. A cidade teve muitas propriedades rurais encobertas por mais de um metro de lama, a maioria pastagens para criação de gado, bem como a parte baixa do Centro da cidade.
O município também é alvo de várias ações de reparação e compensação da Samarco e da Renova, como a limpeza e reforma dos quintais de casas. Proprietários de áreas rurais também recebem auxílio técnico para cadastramento no CAR, nos mesmos moldes de Mariana. E, da mesma forma, apesar desse suporte, uma sequência gritante de terrenos se sobrepõe, sobretudo dentro da área da sede.
Há casos de terrenos com média de 50 hectares que expõem até 12 sobreposições, intercalando-se em diversas partes, evidenciando as distorções no CAR. Impressiona, também, ver como algumas áreas desapareceram depois da destruição que o rio sofreu e como outras se ampliaram com os depósitos de detritos que antes simplesmente não existiam e agora passaram a integrar propriedades.
A Fundação Renova informou que tem auxiliado no cadastro do CAR os proprietários de terrenos que tiveram acúmulo de rejeitos da Barragem do Fundão, bem como aqueles que vivem em áreas que sofrerão intervenções como reflorestamento e reassentamento de desalojados pelo desastre ambiental. Contudo, sobre as sistemáticas sobreposições e cadastramentos errados ao longo de propriedades banhadas pelos rios, a organização diz que o trabalho está em andamento e que muitos proprietários não quiseram o auxílio.
“Queremos estender essa ajuda técnica além da barragem de Candonga (hidrelétrica atingida pela tragédia de Mariana), mas muitos proprietários simplesmente declinaram da ajuda. Há, também, casos de múltiplos herdeiros de terrenos que não oficializaram as partilhas e cada proprietário lança o seu terreno de um jeito, o que gera essas inconsistências”, disse a analista de programas socioambientais Fernanda Maia Oliveira, da Renova.