A Portaria 158/2016, que redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos, é fundamentada nas normas da Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, cujas premissas incluem a segurança relativa à captação, proteção ao doador e ao receptor, coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue. Em nota, o ministério afirmou que as normativas brasileiras consideram vários critérios de inaptidão temporária de doadores de sangue associados a diferentes práticas e situações de risco acrescido, tais como portadores de diabetes, vítimas de estupro, profissionais do sexo, indivíduos com piercing ou tatuados, parceiros sexuais de hemodialisados, que se deslocaram para regiões com alta prevalência epidemiológica de malária, entre outros, e não se restringe apenas a homens que fazem sexo com outros homens.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma das práticas sexuais vulneráveis aos riscos de transmissão de doenças pelo sangue é a relação sexual entre homens. Relatório da organização afirma que desde o início do início da epidemia de Aids, no início dos anos 1980, homens nessa situação e pessoas transgênero têm sido afetados pelo HIV de maneira desproporcional.
Países como Áustria, Alemanha, Bélgica, China, Dinamarca, França, Portugal, Grécia, Hong Kong, Índia, Israel, Noruega, Suíça, Suécia, Turquia e Venezuela têm normas com restrições maiores, recomendando que homens em relacionamento homossexual sejam inaptos definitivamente para doar sangue. O Brasil segue as orientações da OMS e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) que recomendam a inaptidão temporária de indivíduos que apresentam comportamento sexual de alto risco, incluindo as práticas sexuais entre homens, por 12 meses depois da última exposição ao risco. Estados Unidos e Austrália também adotam inaptidão temporária.
‘SANGUE DESPERDIÇADO’ Campanha lançada em abril 2016 por uma agência de publicidade em parceria com a ONG internacional All Out quantificou em uma fila virtual o reflexo dessas regras. Foi contabilizado por meio de uma enquete online a quantidade de homens homossexuais que gostariam de doar sangue e não podem. A Wasted Blood (em tradução livre, “sangue desperdiçado”) alcançou mais de 215 mil doadores numa fila de espera fictícia.
“Nota-se que não há restrição epidemiológica para doação de sangue por mulheres lésbicas, visto que o perfil de risco não difere da população em geral, demonstrando que a questão não envolve preconceito e sim avaliação de epidemiologia das populações”, diz em nota o Ministério da Saúde brasileiro. “Em conclusão, a orientação sexual não é usada como critério para seleção de doadores de sangue por não constituir risco em si, mas estão fundamentadas em evidências epidemiológicas e técnico-científicas visando ao interesse coletivo na garantia máxima da qualidade e segurança transfusional, atendendo aos princípios da precaução e proteção à saúde. Tal embasamento demonstra que essas diretrizes não possuem caráter discriminatório ou preconceituoso”, acrescenta o texto.
Milhares têm HIV e ignoram doença
Atualmente, 827 mil pessoas vivem com HIV e Aids no Brasil. Desse total, 372 mil ainda não estão em tratamento, e, dessas, 260 mil já sabem que estão infectadas. Estima-se que outras 112 mil vivam com o vírus sem saber. Atualmente, a epidemia no Brasil está estabilizada, com taxa de detecção em torno de 19,1 casos a cada 100 mil habitantes, e cerca de 41,1 mil novas infecções ao ano. Os dados constam do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde.
O levantamento mais recente mostra que a epidemia de Aids tem se concentrado, principalmente, entre populações vulneráveis e em pacientes mais jovens. Destaca-se o aumento em jovens de 15 a 24 anos, sendo que entre 2006 e 2015 a taxa entre pessoas com 15 a 19 anos mais que triplicou, passando de 2,4 para 6,9 casos a cada 100 mil habitantes.
O infectologista Unaí Tupinambás, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/UFMG) afirma que, diante das comprovações científicas de risco maior de infecção entre homens que fazem sexo com outros homens, é preciso cuidado especial com o sangue desse doador. “Quem vai receber são pessoas que estão doentes. No Brasil quase se eliminou a contaminação do HIV via transmissão de sangue. No universo de 40 mil pacientes, houve no máximo 10 pessoas em 2017, graças à qualidade dos hemocentros do Sistema Único de Saúde (SUS)”, diz.
Embora haja aumento discreto na transmissão do vírus quando se consideram homens em relacionamento homossexual, e havendo os exames de rastreamento para doação, o médico chama a atenção para o “período da janela”. “É quando a pessoa entrou em contato com o vírus e o teste ainda não o detecta. Os hemocentros criaram vários critérios para garantir a qualidade do sangue que será doado. A chance é maior entre esse público, mas a chance é remota, por todos esses cuidados”, diz.
Sobre a possibilidade de esse grupo passar a doar sangue, se os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidirem, o especialista é enfático: “Juiz é cartorial. Quando o papel fala que todos devem ser tratados de forma igual perante a lei, tenta-se seguir a norma. Não se amplia para a discussão mais técnico-científica. E esse é um fato científico.
A presidente da Fundação Hemominas, Júnia Cioffi, ratifica as explicações do médico. “Pacientes que recebem transfusão têm imunidade alterada, e mesmo uma quantidade mínima do vírus pode matar a pessoa, por causa de uma infecção secundária”, diz. “Não é restrição por questão de gênero, mas por fator técnico, por risco de infecção. E é isso que está faltando na discussão do Supremo”, afirma, lembrando que o Brasil foi um dos primeiros países a reduzir o prazo para doação de homens em relacionamento homossexual. “Entendo que os homossexuais têm que buscar seu espaço, mas nesse caso há um equívoco, pois eles dizem que não têm o direito de doar. Não.
O administrador F.V., de 62 anos, não concorda com esses argumentos, sendo favorável à liberação da doação mediante testes da doença. Ele conta que também já foi hostilizado por querer ser doador. Lembra-se como se fosse hoje do fato ocorrido há 30 anos. “Estava numa festa e encontrei um funcionário do Hemominas, que também era homossexual. Comentei com ele que meu sonho era doar sangue, mas que eu não podia porque tive hepatite quando criança.
Rispidamente, ele respondeu: ‘Mesmo que não tivesse tido a doença, eu não deixaria você doar. Não apareça lá, porque se eu te vir, te denuncio’. Nunca mais esqueci.”
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