A sensação daquele gesto nunca lhe saiu da memória: doar um pouco de si para garantir a vida de outra pessoa. Algo mágico, indescritível, nas palavras do professor R.A., de 31 anos. Na segunda oportunidade, não teve dúvidas: seis meses depois, estava novamente no hemocentro em Belo Horizonte para fazer outra doação de sangue. A euforia, no entanto, caiu por terra e deu lugar ao constrangimento. Foi impedido de doar. Ao questionar o motivo, a resposta veio seca, doída: pelo fato de ele ser homossexual. Assim como R., milhares de doadores em potencial esbarram na regra que restringe a coleta do material desse grupo para abastecer bancos de sangue Brasil afora. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), e pode ser revertida a qualquer momento – embora a pauta da Suprema Côrte esteja embaraçada com questões ligadas ao mundo político.
Leia Mais
No dia da ressurreição de Jesus, três brasileiros com o nome Dele contam como isso impactou suas vidasMais de 500 veículos são rebocados por mês em BH por estacionar em locais proibidosCadastro de imóveis rurais tem graves distorções em Minas GeraisInsulto homofóbico rende indenização de R$ 10 mil a professor em BHDoação de sangue por homossexuais opõe ciência e igualdade
A legislação brasileira não explicita a proibição da doação por parte dos homossexuais, mas, na prática, restringe a ação desses grupos.
Em seu voto, o relator Edson Fachin avaliou que os critérios para a seleção de doadores de sangue devem favorecer a apuração de condutas de risco. Do contrário, estabelecem restrição desmedida com o pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue. O ministro Barroso considerou que as medidas em vigor restringem direitos fundamentais dos homossexuais masculinos. Para Rosa Weber, as normas questionadas promovem um tratamento discriminatório quando elegem como critério de inaptidão para doação de sangue a orientação sexual do doador, e não eventual conduta de risco. Luiz Fux também se manifestou pela inconstitucionalidade ao afirmar que, em vez de verificadas determinadas condutas de risco como critério de inaptidão para doação, as normas elegeram um grupo de risco, exatamente por sua orientação sexual.
PRECONCEITO O professor R.A. conta que se sentiu na pele esse preconceito.
Na triagem, a enfermeira perguntou qual era a orientação sexual do doador, quantos parceiros havia tido no último ano e o estado civil. “Respondi que sou homossexual, tenho apenas um parceiro e que sou solteiro. Ela falou que eu não poderia doar. Perguntei o motivo e ela respondeu que eu estava em um grupo de risco, por ser homossexual”, lembra. R. tentou argumentar, dizendo que tinha parceiro fixo e que, se fosse o caso, o Hemominas poderia fazer o exame para confirmar que não tem doença alguma.
“Quem falou que heterossexual não está exposto? Essa triagem é para ter um direcionamento. Eles têm equipamentos ultramodernos, capazes de detectar até traço de doença infecciosa. Da outra vez, respondi às mesmas perguntas, passei por uma médica e pude doar”, afirma. “Para mim, foi claramente preconceito da profissional encarregada do trabalho naquele dia. Mas a gente fica sem graça e com vergonha de tentar outra vez. Passei por uma situação vexatória. Conversei com outras pessoas que não doam justamente para não passar por situação semelhante.”
A presidente da Fundação Hemominas, Júnia Cioffi, informa que a instituição tem com base as diretrizes das organizações Mundial e Pan-Americana de Saúde, e segue à risca o que é determinado pela legislação. Segundo ela, é feita entrevista com todas as pessoas consideradas em situação de risco para doação. “Não é questão de preconceito, haja vista o fato de que mulheres homossexuais podem doar”, afirma.
Vice-presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (Cellos), a travesti Aniky Lima, de 62 anos, discorda do termo “grupo de risco”. “Hoje não há mais isso.