A sensação daquele gesto nunca lhe saiu da memória: doar um pouco de si para garantir a vida de outra pessoa. Algo mágico, indescritível, nas palavras do professor R.A., de 31 anos. Na segunda oportunidade, não teve dúvidas: seis meses depois, estava novamente no hemocentro em Belo Horizonte para fazer outra doação de sangue. A euforia, no entanto, caiu por terra e deu lugar ao constrangimento. Foi impedido de doar. Ao questionar o motivo, a resposta veio seca, doída: pelo fato de ele ser homossexual. Assim como R., milhares de doadores em potencial esbarram na regra que restringe a coleta do material desse grupo para abastecer bancos de sangue Brasil afora. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), e pode ser revertida a qualquer momento – embora a pauta da Suprema Côrte esteja embaraçada com questões ligadas ao mundo político. Mas a polêmica do sangue já começou a ser avaliada: parte dos ministros se manifestou favoravelmente ou parcialmente favorável a liberar as doações. A decisão agora está nas mãos de cinco integrantes do STF.
A legislação brasileira não explicita a proibição da doação por parte dos homossexuais, mas, na prática, restringe a ação desses grupos. A Portaria 158, de 4 de fevereiro de 2016, que redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos define, em seu artigo 64, grupos impedidos de doar por um período de um ano, entre eles, “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”. Também estão incluídos nesse grupo pessoas que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou drogas ou seus parceiros; que tenham tido um ou mais parceiros ocasionais e desconhecido; que tenham sido vítimas de violência sexual; ou tido relação com portadores de HIV, hepatites B e C ou outra infecção de transmissão sexual e sanguínea; que tenham sido presos; feito piercing, tatuagem ou maquiagem definitiva, entre outros casos. Todas as condições se aplicam ao candidato a doador e a seu parceiro.
"Pacientes que recebem transfusão têm imunidade alterada, e mesmo uma quantidade mínima do vírus pode matar a pessoa por infecção"
Júnia Cioffi, presidente da Fundação Hemominas
Em seu voto, o relator Edson Fachin avaliou que os critérios para a seleção de doadores de sangue devem favorecer a apuração de condutas de risco. Do contrário, estabelecem restrição desmedida com o pretexto de garantir a segurança dos bancos de sangue. O ministro Barroso considerou que as medidas em vigor restringem direitos fundamentais dos homossexuais masculinos. Para Rosa Weber, as normas questionadas promovem um tratamento discriminatório quando elegem como critério de inaptidão para doação de sangue a orientação sexual do doador, e não eventual conduta de risco. Luiz Fux também se manifestou pela inconstitucionalidade ao afirmar que, em vez de verificadas determinadas condutas de risco como critério de inaptidão para doação, as normas elegeram um grupo de risco, exatamente por sua orientação sexual.
PRECONCEITO O professor R.A. conta que se sentiu na pele esse preconceito. A primeira vez que doou foi atendendo ao pedido de uma amiga, cujo pai estava com câncer nos rins. “O mais interessante ao doar é você imaginar que, naquele momento, algo que é vital para a sua existência vai dar continuidade à vida de outro. É um pedaço seu que está vivo em outra pessoa. É um gesto altruísta muito bonito e muito forte, e isso ficou presente em mim”, relata. Seis meses depois da primeira experiência, ele decidiu voltar ao Hemominas voluntariamente, em uma época em que o hemocentro fazia campanha devido à baixa no estoque de sangue.
Na triagem, a enfermeira perguntou qual era a orientação sexual do doador, quantos parceiros havia tido no último ano e o estado civil. “Respondi que sou homossexual, tenho apenas um parceiro e que sou solteiro. Ela falou que eu não poderia doar. Perguntei o motivo e ela respondeu que eu estava em um grupo de risco, por ser homossexual”, lembra. R. tentou argumentar, dizendo que tinha parceiro fixo e que, se fosse o caso, o Hemominas poderia fazer o exame para confirmar que não tem doença alguma. Mas nada adiantou.
“Quem falou que heterossexual não está exposto? Essa triagem é para ter um direcionamento. Eles têm equipamentos ultramodernos, capazes de detectar até traço de doença infecciosa. Da outra vez, respondi às mesmas perguntas, passei por uma médica e pude doar”, afirma. “Para mim, foi claramente preconceito da profissional encarregada do trabalho naquele dia. Mas a gente fica sem graça e com vergonha de tentar outra vez. Passei por uma situação vexatória. Conversei com outras pessoas que não doam justamente para não passar por situação semelhante.”
A presidente da Fundação Hemominas, Júnia Cioffi, informa que a instituição tem com base as diretrizes das organizações Mundial e Pan-Americana de Saúde, e segue à risca o que é determinado pela legislação. Segundo ela, é feita entrevista com todas as pessoas consideradas em situação de risco para doação. “Não é questão de preconceito, haja vista o fato de que mulheres homossexuais podem doar”, afirma.
"Esse sangue de homossexuais poderia salvar vidas. Quantas pessoas falam que são heterossexuais, mas têm relação com outros homens?"
Anilky Lima, vice-presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual
Vice-presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (Cellos), a travesti Aniky Lima, de 62 anos, discorda do termo “grupo de risco”. “Hoje não há mais isso. Existem pessoas em situação de risco. Qualquer um pode ser portador de HIV ou outra doença sexualmente transmissível e está doando sangue sem fazer teste. É uma ignorância continuar esse preconceito relacionado à Aids no que diz respeito à população LGBT, travestis e transsexuais. Quando surgiu a Aids, não podíamos nem sair na rua que éramos apedrejados. Fico triste em saber que o ser humano não evoluiu”, pontua. “Esse sangue de homossexuais poderia salvar vidas. Quantas pessoas falam que são heterossexuais, mas têm relação com outros homens?”, questiona.