Buenópolis – Os desenhos de cascos partidos ao meio, impressos por toda a estrada de terra vermelha, mostram que a Serra das Sempre-Vivas ainda é um caminho pelas montanhas para a passagem das boiadas do Norte de Minas. Uma vocação assumida desde os séculos 18 e 19, quando a região de Diamantina, que fica do outro lado dos montes, era a maior exportadora de diamantes do mundo.
Por ser uma área extremamente acidentada, os arredores das minas dependiam de vaqueiros e tropeiros que levassem gado e outros alimentos impossíveis de serem cultivados nos terrenos acidentados e pedregosos. E alguns apuros daquela época ainda ocorrem hoje, como amostras dos perigos que a travessia desses caminhos elevados representavam para os viajantes.
Numa das curvas da via arcaica, entre Buenópolis, no Norte de Minas, e Diamantina, no Alto Jequitinhonha, a reportagem do Estado de Minas pôde experimentar uma dessas ameaças, contada nesta edição da série Montanhas de Histórias. Relatos trazidos mensalmente pelo EM, em seus 90 anos de fundação e que descrevem o desbravamento, as tradições e a alma dos mineiros em sua conquista do território montanhês.
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Assustados com a presença de pessoas na estrada, os bovinos negros, malhados, pardos, brancos, uns de chifres, outros de grandes cupins nos lombos, se espalharam. Varreram uma vasta área, destocando troncos, arrebentando cercas e atropelando pedras. Restaram as árvores além da estrada como único abrigo contra essa massa avassaladora e mortal, possivelmente muito similar às que por aquele mesmo caminho eram tocadas até a região das minas. Impotente, o vaqueiro, que descia a cavalo atrás dos animais, apenas acenou para confirmar que não havia nenhum ferido. Passado o susto, com a boiada já distante, o destino era uma estrutura que testemunhou esse mesmo movimento por 300 anos.
O chamado Curral de Contagem, ou Curral de Pedras de Curimataí, foi utilizado pelos pioneiros para receber o gado dos viajantes, que levavam cerca de uma semana para chegar a Diamantina. Uma estrutura feita de rochas extraídas de jazidas da região. Cada peça maciça era esculpida para que seus encaixes fossem assentados com precisão e empilhadas na forma de um quadrado no platô da montanha. Essa construção sobreviveu à passagem do tempo e ao fim das travessias de gado, a uma altitude de 1 mil metros e a três quilômetros da última estrada transitável por veículos e que vem do distrito abaixo.
De acordo com os registros arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a existência do curral foi que estimulou a formação do distrito de Curimataí, entre 1760 e 1770. “A região das minas de diamantes precisava ser abastecida por diversos gêneros. Desde gado a outros artigos que não produzia em quantidade suficiente para sustentar a sociedade mineradora, que se instalou sobretudo no Tejuco, antiga Diamantina. Por outro lado, os criadores de gado e os tropeiros eram pagos pela produção de diamantes”, salienta o chefe do escritório do Iphan em Diamantina, Junno Marins da Matta.
As cenas do tráfego dos últimos tropeiros pelas montanhas ainda estão guardadas na memória do lavrador Sebastião Augusto Lopes, de 82 anos. Sentado em um banquinho na beira da estrada que se eleva para a serra, sob a sombra de uma pequena árvore, ele descreve a fileira de animais de carga preparada para marchar por três dias até a primeira paragem no alto da serra. “Os burros da tropa ficavam todos amarrados, com as bolsas e cestos pendurados no lombo e carregados de banda. Levavam lá para o alto um punhado de coisas. Era rapadura, farinha, banha, carne seca, sal. Eu era menino nessa época e a gente ficava esperando a volta dos tropeiros para saber como é que tinha sido no outro lado da serra, em Diamantina”, lembra o lavrador, enquanto descasca dentes de alho com uma faquinha.
(A LOJA ROTA PERDIDA/ROTA EXTREMA - www.rotaperdida.com.br - forneceu parte dos equipamentos usados nas expedições)